O fogo da labareda da serpente

A partir de hoje o portal ENTRE-TEXTOS começa a publicar "O fogo da labareda da serpente", da Dra. Neuza Machado, um livro em que ela analisa os mitos amazônicos através do romance "O amante das amazonas", de R. Samuel. Leia na sua coluna "Caffé com literatura".

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É evidente que, em relação às obras, as idéias permanecem sempre breves, e que nada pode substituir as primeiras. Um romance que não fosse mais do que o exemplo de gramática que ilustra uma regra ─ ainda que acompanhada de sua exceção ─ seria naturalmente inútil: bastaria o enunciado da regra. Exigindo para o escritor o direito à inteligência de sua criação, e insistindo sobre o interesse que a consciência de sua própria pesquisa representa para ele mesmo, sabemos que é sobretudo ao nível do estilo que esta pesquisa se realiza, e que no instante da decisão nada está claro. Assim, após ter indisposto os críticos ao falar da literatura com a qual sonha, o romancista se sente repentinamente desarmado quando esses mesmos críticos lhe pedem: “Explique-nos portanto por que você escreveu esse livro, o que significa, o que você pretendia fazer, com que intenção você empregou esta palavra, por que construiu esta frase desse modo?”

Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel

Manifestado à moda dos lendários heróis de misteriosas histórias de cerimônias e cultos diversos, Paxiúba é a encarnação mítico-ficcional de antigos guardiões extravitais (de qualquer arcabouço esotérico da humanidade, humanidade esta quase sempre conduzida por elementos das forças sobrenaturais), os quais povoaram, ao longo do tempo, a poderosa imaginação reduplicada, sintagmática, do mundo dos conceitos veneráveis. Paxiúba se configura como o símbolo das forças da natureza selvagem do Amazonas (no caso, o estrato mítico-substancial da sociedade indígena amazonense), e, acima de sua aparência exterior, a matéria épica se faz presente no relato ficcional, realçando o prestígio prosopopaico de sua natureza humana.

 


Diante de semelhantes perguntas, seria possível dizer que sua “inteligência” não lhe serve para mais nada. O que ele quis fazer foi apenas aquele livro mesmo. Isto não quer dizer que ele está sempre satisfeito com esse livro; mas a obra continua a ser, em todos os casos, a melhor e a única expressão possível de seu projeto. Se o escritor tivesse tido a faculdade de dar uma definição mais simples de seu projeto, ou de reduzir suas duzentas ou trezentas páginas a uma mensagem em linguagem clara, de explicar o funcionamento de seu projeto palavra por palavra, em suma, de dar a razão de seu projeto, não teria sentido a necessidade de escrever o livro. Pois a função da arte não é nunca a de ilustrar uma verdade ─ ou mesmo uma interrogação ─ antecipadamente conhecida, mas sim trazer para a luz do dia certas interrogações (...) que ainda não se conhecem nem a si mesmas. (ROBBE-GRILLET)

Com estas palavras de Alain Robbe-Grillet, sobre o novo romance (não apenas francês), o fenômeno literário que marcou o globalizado e caótico século XX (o século que propiciou a difícil transição histórica da modernidade para a pós-modernidade), palavras estas escritas no final da década de cinqüenta, exprimo o meu empenho de dialogar reflexivamente com a obra de Rogel Samuel denominada O Amante das Amazonas
[i] (publicada em segunda edição, em 2005, pela editora Itatiaia de Belo Horizonte). Recupero as asserções de Robbe-Grillet sobre o narrador do século XX (neste momento interativo da crítica literária no Brasil, e neste início de século XXI), porque medito sempre o enigma criador do ficcionista do todo do século passado, independente de sua localização de nascimento, e percebo que as “inovações” ficcionais, daquele momento, continuam hoje sob “renovadas” roupagens, e as questões teórico-críticas (que enlaçam o escritor ficcional), levantadas por Robbe-Grillet, continuam ainda a fazer parte da realidade sócio-intelectual do crítico literário brasileiro. Retomo o assunto, porque, nestes tempos pós-modernos, tempos globalizados, o escritor (seja de qualquer nacionalidade, poeta ou ficcionista ou dramaturgo ou outro direcionamento literário) se coloca na obrigação de explicar a sua criatividade à chamada imprensa cultural dominante. É matéria verdadeira que somente algumas questões visíveis são questionadas, porque, as invisíveis vão estar resguardadas no plano particular do autêntico texto-obra, a exigir que o leitor-especulador do momento histórico de sua publicação, ou de épocas futuras, as venha examinar. Sem o aval das explicações exigidas (uma vez que os textos ficcionais da pós-modernidade são de difícil entendimento), o escritor dos dias de hoje não se contempla reconhecido pela mass media como criador literário, perdendo por tal desvalimento a oportunidade de ser lido, o que, convenhamos, é o anseio normal de quem escreve.

Esta propedêutica, objetivando espelhar a posição do crítico literário atual, se fez/faz-se necessária, porque a enxergo apontada em minha direção, uma vez que, para interagir com a diferenciada obra ficcional de R. Samuel, respeitante ao espaço geográfico do Amazonas ─ social e mítico ─, lugar pouco conhecido à minha própria percepção intelectiva, movi-me, inicialmente, em busca das estimáveis explicações do próprio escritor, acauteladas nas diversas entrevistas por ele permitidas aos jornalistas-internautas.

Por intermédio das Entrevistas, Rogel Samuel ofereceu, aos leitores de seu romance, encaminhamentos seguros sobre a natureza de sua criatividade ficcional a qual reputo como autenticamente Pós-Moderna/Pós-Modernista de Segunda Geração. Autêntica, porque há no momento inautênticos autores que se fazem passar por ficcionistas pós-modernos, mas que são, em verdade, escritores-mercadores de uma literatura de massa sem nenhum crédito no âmbito da Arte Literária. Apenas foram conceituados pela mídia enganosa deste momento sócio- intelectual como bons escritores, para visarem ao lucro em detrimento da qualidade de um texto. O romance de Rogel Samuel, pelo exame teórico-interpretativo-reflexivo, ultrapassa tais exigências comerciais, pelo fato de ser uma narrativa de alto nível criativo e se inserir no que qualifico como peculiar obra pós-moderna.
NEUZA MACHADO - 2008