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 Entretanto, foi o narrador-personagem Ribamar de Sousa, “o primeiro a ver uma fêmea Numa”. É verdade. Os ficcionistas anteriores, os considerados como verdadeiros criadores ficcionais, não ousaram infringir as leis dos pensamentos preconceituosos já instituídos, preservadores da hipocrisia familiar, esta, por sua vez, avessa à libertação de juízos formalizados a respeito de afinidade sexual entre indivíduos do mesmo sexo. E esses pensamentos institucionalizados, repressores, impediram, até ao final do século XX e do milênio, a exposição denotativa do assunto, mesmo que fosse pela forma ficcional.

O narrador do século XX, ficcionalmente, intuitivamente ou não, percebeu os dogmas imperialistas sobre o assunto e os ultrapassou. A sua infração sócio-ficcional se notabiliza ao longo de sua narração sobre os Numas. Por minha parte, para interpretar a cena em que o narrador Ribamar de Sousa afirma ter sido o primeiro “a ver uma fêmea Numa”, vejo-me na eventualidade de buscar, uma vez mais, auxílio cognitivo em A água e os sonhos, de Gaston Bachelard, lembrando aqui que o filósofo francês, por seu turno, não se esquivou da busca de digressões metafísicas em outros pensadores. No capítulo II do livro anteriormente assinalado (AS ÁGUAS PROFUNDAS ─ AS ÁGUAS DORMENTES ─ AS ÁGUAS MORTAS), há uma citação de Nietzsche, retirada do livro Schopenhauer, página 33: “É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem” . Aproprio-me da citação nietzschiana, via Bachelard, para compreender este diferenciado parágrafo.
É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem, afirmou Nietzsche, e Bachelard referendou-o. E se Marie Bonaparte, endossada também por Gaston Bachelard, “descobriu” “a principal razão psicológica” da “tonalidade profunda do devaneio criador” dos contos de Edgard Alan Poe, porque não poderia agir da mesma forma, esta analista e ao mesmo tempo fenomenóloga tupiniquim, ao dialogar com este texto diferenciado do final do século XX? E por que não repensar também algumas idéias de Foucault, reveladas à França e ao mundo lá pelos idos dos anos de 1970, ainda atuantes por aqui, nestas plagas também tupiniquins, nestes anos iniciais do Terceiro Milênio.
Muito antes de Michel Foucault, Bachelard compreendeu que “a função do intelectual específico” deveria “ser reelaborada” e “não abandonada”. Apenas, como referencial comparativo, me vejo na obrigação de colocar, aqui, as afirmativas de Bachelard sobre um assunto, teórico, que esteve a incomodar os intelectuais europeus, ao longo do século XX, e que, infelizmente, continua a pressionar os intelectuais brasileiros, os quais, como se evidencia, estiveram e estão ainda presos nas malhas das antigas teorias estrangeiras. As antigas orientações da teoria literária estão hoje misturadas, graças ao processo globalizante da atualidade, às novas teorias literárias que por aqui aportaram no final do século XX e princípio deste. Resguardados por esse entrançar de teorias literárias díspares, os mestres e professores universitários deste lado de cá do Atlântico, e aqui, nestas minhas paragens, se digladiam, cada qual querendo impor a sua verdade analítico-interpretativa, em se tratando de literatura, seja ela brasileira ou estrangeira. Neste meio intelectual tupiniquim, como leitora-intérprete, da obra O Amante das Amazonas, também me afogo e me debato em diversas teorias, movendo-me “nas igualmente imaginárias áreas do Rio Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais”, ou seja, nestas “águas” admiráveis recriadas pelo poder ficcional de quem narra.

Desta forma, e por causa disto, envolvi-me pela orientação filosófica de Gaston Bachelard, sobre o assunto que ora me movimenta, apenas para referendar a anterior citação de autoria de Michel Foucault. Exatamente. Esta intelectual tupiniquim encarrega-se, aqui, nestas reflexões sobre esta obra singularíssima do final do século XX, de responsabilidades perigosamente político-interpretativas, ou que poderão ser interpretadas, algures, assim. A questão homossexual, levantada pelo narrador-personagem de O Amante das Amazonas não é “um problema só de especialistas”, é uma questão ainda camuflada nos meios sócio-familiares brasileiros e que interessa a todos, sem distinção sexual ou de classe. É um problema que está longe de servir aos interesses do Capital e do Estado, não veicula uma ideologia cientificista, mas exige que seja revisto, por ângulos mais conscienciosos e sem interferências preconceituosas. As “águas” dessas lembranças míticas de Ribamar de Sousa “correm desde o sem princípio das partes íntimas” da narrativa. Anteriormente, em períodos literários do passado, a proposta de “princípio” narrativo estava submetida à força das “árvores de 70 metros de altura”, frondosas “árvores” conceituais, dominadoras, cerceadoras de um novo princípio narrativo. Tais “árvores” conceituais estavam/estão, talvez estarão ainda a impedir uma novíssima ultrapassagem verbal ─ ficcional-arte ou paraliterária ─ contra as tradicionais seculares instituições prejudiciosas de como se apresentar ao mundo. Urgia plantar outras, mais condizentes com a realidade do final do século XX. Necessita-se plantar outras mais harmônicas com este início de século XXI.
As “águas” provêem “dos desconhecidos lugares da origem Numa”, uma tribo desconhecida geograficamente e que ficou à margem da história do Amazonas, por exigências sócio-substanciais. Dessa tribo de índios audazes, só se perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à força física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus diferenciado. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem Numa ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas friamente ao esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento, porque foram interditadas e repudiadas vergonhosamente pelo anterior regime patriarcal. Foram/são esquecidas e passaram/passam, porque, se íntimas, representaram/representam “perigo”, se fossem/se forem verbalizadas.
Essas “águas”, que vêem de “desconhecidas origens Numas”, águas mitológicas, são especiais, porque provêem do devaneio interno. O narrador Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do homem do final do século XX. Refiro-me àquela matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração. 
“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras, não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas, para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e “pode-se banhar e pescar”. A imaginação, como diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador” , pois ela está resguardada pelas lembranças de antigas leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história), propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se “banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e “pescar” novíssimos juízos. As “gêneses lineares” versus a “força do não-dito”: Michel Foucault desenvolve um assunto interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.
Foi a partir da “Curva do Tucumã”, a curva onde se reencontram as diferentes cenas e onde elas desempenham papéis distintos, que os Numas/Numes ficcionais se infiltraram, avançaram e atravessaram as leis da história do homem ocidental, premiando os atuais leitores pós-modernos e futuros com uma númica e criativa cena: as indiazinhas Numas em interlúdio amoroso à beira das majestosas águas, eternas, do pensamento mitificado, a construir monumentos ciclópicos. Os Numas/Numes passaram “além de si mesmos” e não respeitaram seus próprios limites mágicos, e com isto, enquanto divindades aéreas e/ou aquáticas, interiorizadas, atravessaram “o rio e a ordem que o rio exercia na floresta” (atravessaram as lembranças do primeiro narrador Ribamar e o texto que seria apresentado aos leitores).
Necessito de uma explicação: Em um primeiro momento, refleti o assunto pelo ponto de vista da interpretação primária, respaldada pelo próprio texto ficcional em questão. Com esta atitude, reconheço, submeti-me ao risco de uma desconexa contra-afirmação metodológica, como proclamei anteriormente. Para uma interpretação reflexivo-fenomenológica e explícita do mítico relacionamento das indiazinhas Numas/Numes, interpretação esta que seja respeitada pelos meus pares intelectuais, submissos às teorias literárias estrangeiras (a maior parte, pelo menos), exige-se, para o esclarecimento do assunto, um repensar à moda do fim da modernidade (Era Moderna) e o início da pós-modernidade (do século XX para cá).
Até meados do século passado (século XX), a questão, no âmbito da criação ficcional, não poderia ser exposta nitidamente. Os pensadores fenomenólogos, como, por exemplo, Nietzsche, Heidegger, Deleuze, Foucault, Vattimo, perceberam que a artística interpretação literária da realidade (arte literária) teria de acompanhar a situação real de quem a produzisse. O escritor-artista, fosse ele ficcionista ou poeta, teria de mostrar uma de suas faces ao mundo ─ neste romance, por exemplo, a de criador literário ─, ou seja, o seu modo de estar no mundo. O escritor-ficcionista do século XX sofreu esta exigência cogitativa e cognitiva ao ver-se obrigado a abandonar a forma exemplar/linear dos narradores ficcionais tradicionais em proveito de um diferenciado propósito narrativo-ficcional. Os narradores do século XX (não confundi-los jamais com os narradores épicos), narradores esses do caos vivencial do homem em transição, secular e milenar, exigiram, para si mesmos (e para os pósteros) uma renovada forma de expressão literária/ficcional (sem absolutismo), que os representasse, orientando-os para uma não-convencionada atitude ante as regras imperialistas, cerceadoras, do mundo moderno. Por exemplo, neste romance especialmente, esta idéia de uma renovada literatura ficcional já se revela sublinearmente.
“O rio era um deserto”. Penso, extratexto narrativo, o que esta informação ficcional quer dizer, ou seja, não havia como transformar em palavras as expressivas lembranças. No entanto, existia o desejo, “um impulso obscuro e sem nome” de oferecer “plenitude” aos pensamentos diferenciados. O narrador-personagem “tinha arriscado a vida” para, enfim, dar forma ficcional à sua intuição criadora.  Ele “tinha sido capaz de cambiar a vida pela verdade”. O que seria esta verdade? Seria uma verdade deleuziana?
O que seria a verdade do narrador-personagem Ribamar de Sousa? Seria aquela imposta pelas anteriores regras ficcionais, substanciais, regras essas que tanto incomodaram o escritor Alain Robbe-Grillet, Jules Deleuze, Michel Foucault e outros, em meados do século XX, regras imperialistas que impunham ao escritor um modelo (linearidade), à moda de grandes romances do passado, modelo este para o qual o jovem escritor deveria manter os olhos voltados, como afirmou Robbe-Grillet? Ou tal narrador-inovador deveria buscar sua verdade no fundo do poço dos juízos de descoberta (Bachelard), distanciado das regras ficcionais substanciais de seu momento-histórico e encarregar-se por sua vez de lutar titanicamente com as palavras diferenciadas, originárias de novíssimos princípios e restritas ao imaginário-em-aberto do repouso fervilhante (do segundo narrador)?
Os fundamentos substanciais daquelas regras anteriores ao pós-modernismo, se as penso pela ótica de Gianni Vattimo , àquela época, não poderiam ser criticados e, muito menos, reformulados, ou mesmo refundamentados, pois eram fundamentos considerados absolutos, consagrados, inquestionáveis. Assim, a ficção do século XX final, entrópica, sinalizou-se como a ficção do não-fundamento. Aqui, repenso aquela informação perfeita, artística, sucinta, citada páginas atrás: “Como nessa matéria nada é absoluto”. Esta afirmação endossa o meu texto reflexivo-interpretativo, sobre o diferenciado narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, o narrador-personagem Ribamar de Sousa, neste meu texto teórico-interpretativo, conscientemente fragilizado, porque se coloca nitidamente como pioneiro (e que, certamente, sofrerá repetidas investidas, contrárias, das hostes intelectuais, brasileiras ou não, proprietárias das eternas verdades teórico-críticas institucionalizadas).
Contudo, voltando à ficção do século XX, entrópica, reafirmo, pela minha própria forma de entender o pensamento de Gianni Vattimo, que esta se sinalizou como a ficção do não-fundamento. Os ficcionistas-criadores de uns anos para cá não instituíram os chamados fundamentos corretos, não estabeleceram verdades absolutas, negaram uma disposição e distribuição do fazer narrativo pelo modelo tradicional, desenvolveram um diferenciado exame da realidade de suas propostas ficcionais. Esses ficcionistas do século XX, extremamente não-convencionais, procuraram uma adequação ao estado entrópico de suas realidades existenciais. Já que não possuíam mais a confiança e firmeza do substancialmente instituído, valeram-se de suas dúvidas diárias, vazias, desenvolvendo gradativamente suas lutas titânicas com as palavras ainda não-substancialmente formalizadas.
A verdade do narrador-personagem Ribamar de Sousa foi o estabelecimento da não-verdade do criador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pois este não possuía, naquela altura, um fundamento histórico sobre os Numas, já que estes provieram da dimensão mitológica.
IN: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE - SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE R. SAMUEL.