O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE - NEUZA MACHADO

SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

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Por este prisma foucaultiano, percebo atualmente o inter-relacionamento teórico-crítico dos diversos saberes analítico-interpretativos do momento, os quais promovem o entendimento do texto ficcional dos ficcionistas da pós-modernidade. Neste meu tempo de pluri-atividade intelectual, por certo submetida a pluri-rotatividade criativa do ficcionista pós-moderno-pós-modernista de Segunda Geração, não há como fugir à regra. Para pensar a atuação do personagem Pierre Bataillon, senhor do Seringal Manixi, e repensar os limites ilimitados que confirmam o seu fabuloso poder, enquanto espaço extravital, não poderei observar apenas a sua efetiva localização geográfica na região amazonense. Pelo ponto de vista dos tratados descritivos, sobre o local (de fato) desta ímpar recriação ficcional, a ilimitação não existe. O Manixi natural não poderá conter o (competir com o) Manixi ficcional. Se me adéquo às regras analíticas, subservientes aos cientificistas conceitos críticos cerceadores (oriundos de antigas normas estruturalistas, ou da já ultrapassada teoria de exclusão do silêncio ), criticadas alhures por críticos fenomenológicos, o espaço geográfico em questão se reduzirá a um trecho da Floresta Amazônica, onde se localiza uma região propícia ao plantio de mandioca e um lago, que foi chamado de Manisi Avani pelos antigos habitantes indígenas do lugar, o qual, a seguir, sofreu assimilação vocabular com o nome de Manixi. Investigando, no mapa do Brasil, o singular Amazonas e outros Estados adjacentes, buscando o nome do lugar (lugar que me embaraça reflexivamente, por não conhecê-lo internamente) e as diversas denominações dos rios caudalosos e igarapés ostensivos, que aparecem, em grande quantidade, atravessando o relato, acharei, com certeza, vestígios esclarecedores, sem custo teórico, como costumo dizer. Existe realmente esta sugestiva nomeação geográfica, habilmente recriada pelo narrador rogeliano, em seu diferenciado romance sobre a glória e declínio do Amazonas. O Manixi de lá (o geográfico) é um local que abriga um lago piscoso (Lago Manixi), situado na Bacia do rio Solimões, submisso ao Município de Iranduba. O nome do local se notabiliza pelo fato de existir ali, entre a variegada flora equatorial, o armazenamento de uma árvore (ou arbusto) chamada manixeiro, cujos frutos saborosos são conhecidos por manixi (espécie de mandioca), além da planta chamada maniva ou maniwa (espécie de amendoim). Manixi, segundo outras fontes, provém de Manibí (maniibí), que quer dizer, em sentido lato, Terra da Mandioca. A deusa indígena Mani era, por exemplo, cultuada como a deusa da mandioca, o que, no caso, simbolizava a divindade indígena protetora da fartura, da prosperidade. Além disto, segundo informações governamentais, existe ainda (atualmente sem esplendor) o Seringal Manixi, sobredito ficcionalmente e distinguidamente nesta narrativa pós-moderna. Entretanto, o Seringal Manixi que anima minhas reflexões poderá ser interpretado reflexivamente por intermédio da filosofia de Gaston Bachelard, quando este interage filosoficamente com a poética da casa primordial, em seu livro A Poética do Espaço, ou mesmo, ainda reflexivamente, por meio dos pensamentos foucaultianos sobre o poder.
O Manixi, o que me acena provocativamente, não é o Manixi real dos manuais geográficos da região amazonense. Encontro-me, aqui, acanhada pelo mítico-ficcional Seringal Manixi e por seu Palácio magnificente, “supremo, inominável, majestoso” ; inclusive, por seu dono extraordinário, cuja alcunha reputada é Pierre Bataillon, “um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá” ; além de deparar-me enlaçada nas inúmeras questões pós-modernas deste diferenciado romance. Entretanto, para deslindá-lo reflexivamente, com convicção teórico-interpretativa, buscando o plano do silêncio fenomenológico à moda dos atuais pensamentos interativos, ou do filósofo francês Gaston Bachelard, ou pela poderosa lente genealógica de Michel Foucault, não me furtarei a um cotejamento com a realidade histórico-geográfica do Amazonas, confrontando-a com o sistema mítico-social da ficção rogeliana, em benefício de esclarecimentos interpretativos. Por conseguinte, buscarei, no texto ficcional pós-moderno, as informações proveitosas ao meu interativo e reflexivo pensamento dialetizado.
O Manixi da narrativa rogeliana poderá ser visto pelo mesmo prisma que revelou aos leitores universais o Sertão ficcional de Guimarães Rosa. Assim como o Sertão roseano, oriundo do sertão de Minas Gerais, que “está em todo lugar”, como diz Riobaldo (o personagem-narrador de Guimarães Rosa), do mesmo modo percebo o Manixi ficcional rogeliano. Assim como o Sertão de Guimarães Rosa foi visto, por mim, em meu livro, Do Pensamento Contínuo à Transcendência Vital (do cogito(1) ao cogito(3)), como um reflexo da casa primordial, repensada a partir da ciência filosófica de Gaston Bachelard, da mesma forma o espaço ficcional do Manixi será aqui interpretado. A narrativa revelou-me, e revelará aos futuros leitores rogelianos, as íntimas lembranças (memória) e recordações (matéria poética) do narrador amazonense, sobre a sua “casa primordial” inesquecível. Os sentidos vitais (auditivos, visuais, nasais, táticos, gustativos), provindos da infância e adolescência, vividos ali, permaneceram/permanecem intensos e persistentes em suas lembranças poetizadas, mesmo que ele esteja hoje distanciado geograficamente de seu lugar de nascimento, e são percebidos liricamente (matéria lírica interferindo no relato ficcional) ao longo da narrativa. Quem se lembra (recorda ficcionalmente) do Igarapé do Inferno (por que “do Inferno”?) e de toda aquela paisagem dantesca é o segundo narrador, originário do entrópico século XX. O personagem-narrador Ribamar de Sousa apenas se coloca como o porta-voz de suas reminiscências (ou o duplo, ou a máscara ficcional do criador singular atavicamente preso às lembranças e recordações do passado, fossem boas ou más).
 “Pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco”, afirma(m) o(s) narrador(es) (s). O primeiro narrador, Ribamar de Sousa (reduplicado por uma pluralização pessoal) chega ao Palácio Manixi quando este já começava a apresentar-se em seu processo de decadência. Para revelá-lo reflexivamente aos leitores atuais e do futuro, buscarei reforço analítico-interpretativo na Poética da Casa de Gaston Bachelard e em outras interferências filosóficas (citações), valiosas, retiradas dos diversos livros de sua fase noturna. O Palácio, a Floresta, a Cidade, todos os planos desta obra diferenciada se distinguem a partir de um único princípio, ou seja, refletem a “casa inesquecível” de que nos fala Bachelard, com seus recantos secretos aninhados no mais profundo dos pensamentos. Por isto, o “Igarapé do Inferno” (por que Igarapé do Inferno?) se revela a sinalizar íntimas lembranças infernais, lembranças que obrigam o primeiro narrador a revelá-las. Quem está buscando o “passado interdito” é o segundo narrador, porque foi ele, enquanto singularidade ativa de seu núcleo social primitivo, que chegou ali, pelo nascimento, já no final de uma era de glórias capitalistas, já no início da decadência do esplendor da borracha.
O Palácio Manixi como reflexo das ruínas da casa natal. O Palácio como reverberação das perdas existenciais de um narrador invulgar que poderia ter nascido, crescido e permanecido na opulência, por ser herdeiro de nomes notáveis (perdidos, por interferência de durações mal administradas), mas que se viu na contingência de sair pelo mundo (assim como o Ribamar de sua história), “a criar [suas] próprias pélas” . O segundo narrador, certamente oriundo de famílias destacadas daquele passado de glórias, poderia ter sido, naquelas paragens de nascimento, um Zequinha Bataillon bem edificado. A crise da borracha decidiu o contrário. Seu parente Maurice Samuel (citação do romance), rico judeu-francês, figura de destaque na cidade do princípio do século XX, perdeu toda a sua fortuna, quando da recessão econômica da borracha, ficando na bancarrota. Foi, talvez, a partir da imagem de Maurice (possivelmente e sintagmaticamente, sempre destacada com reverência e respeito), metaforicamente assimilada (somatório) às antigas figuras dos chefes políticos manauaras, que houve surgir representações/recriação do poderoso Pierre Bataillon.
Recuperando as informações bachelardianas, contidas no capítulo “A dialética do energismo imaginário” , do livro A Terra e os Devaneios da Vontade, e se as comparo com as informações contidas no texto ficcional rogeliano, a delineação de grande efeito, poderosa, do personagem Pierre Bataillon, se tornará mais transparente.
Bachelard diz: “A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema”, quer dizer, não é problema do filósofo (não é problema dele, do Gaston Bachelard). E continua: “Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade”, e isto é um problema do ficcionista-criador, e neste caso específico, do ficcionista manauara. Quem terá de se deixar seduzir momentaneamente pelo instante metafísico pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pelo “hipnotismo das aparências”, dos simulacros cotidianos que imperam em seu momento histórico, e quem terá de se embaraçar nos “ouropéis da majestade” de um personagem ímpar, poderoso, é o “demiurgo do vulcanismo”, conectado indissoluvelmente e indistintamente ao “demiurgo do netunismo” - o demiurgo da terra flamejante acoplado ao demiurgo da terra molhada - [oferecendo] “seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole”. “A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros”, explica Bachelard. Então, a “vontade de trabalho” ficcional do narrador pós-moderno, extremamente diferenciada, ao revelar a grandeza e declínio da Era da Borracha, no Amazonas, não poderá ser avaliada como subproduto de suas inúmeras leituras (históricas ou não) sobre o assunto. Sua “vontade de trabalho”, ao intuir a sua ficção singular, ultrapassou os limites do explicitamente oferecido. Sua “vontade de trabalho” criou “as imagens de suas forças” narrativas, forças que o animaram “por meio das imagens materiais”, ficcionistas, de um Manixi esplendoroso e de um Pierre Bataillon repleto de um supremo poder (o poder capitalista selvagem que grassou no Amazonas, a partir do século XIX até meados do século passado - século XX -, e que se enfraqueceu, posteriormente, retirando do lugar o esplendor de outrora).
“O trabalho põe o trabalhador no centro do universo e não mais no centro de uma sociedade. E se o trabalhador precisa, para ser vigoroso, das imagens excessivas, é da paranóia do demiurgo que vai tirá-las”. Paranóia do demiurgo: o “trabalhador” ficcional necessitou do seu primeiro narrador Ribamar de Sousa (o demiurgo à moda dos ficcionistas do período de transição do pós-moderno/modernismo de Terceira Geração para o pós-moderno/pós-modernismo de Primeira Geração) para recuperar a paranóia (delírio de grandeza) de uma pequena sociedade provinciana (sua sociedade de origem), sociedade que já perdeu há muito a ostentação do passado, mas que insiste ainda em cultuá-la, apesar da pobreza e do abandono, dos desníveis sociais visíveis nas populações ribeirinhas.
Por este aspecto, o Manixi ficcional é uma “Gênese”, como afirma Gaston Bachelard (ou se quiserem, é a “Fênix” ressurgindo das cinzas), porque “a vontade de trabalho” do escritor (acrescido de seu ilimitado imaginário-em-aberto, já interagindo com cogito(3) da consciência revigorada) assim determinou. As “visões diferentes” do “ferreiro” e do “oleiro” (as “visões” diferenciadas, submetidas às matérias diferenciadas, tais como terra, água, fogo e ar) sedimentaram um novo universo ficcional em expansão: o Manixi. (Assim como o diferente “Sertão” de Guimarães Rosa, a mítica “Macondo” de Gabriel Garcia Marques, e a fantástica cidade de “Santa Maria” de Juan Carlos Onetti, escritor uruguaio).
Ainda, retomando a proposta inicial deste meu capítulo sobre o poderoso Pierre Bataillon e o seu Império monumental - o Manixi  -, sem abandonar as diretivas bachelardianas que me estimulam por ora a interagir reflexivamente com o romance, para refletir sobre o poder capitalista primitivo (dimensão sócio-substancial, sintagmática, linear) de Pierre Bataillon em seu dilatadíssimo e ficcional Império Manixi (dimensão mítico-ficcional paradigmática), imponho-me um repensar à moda foucaultiana, entrelaçando-o com os conceitos fenomenológicos dos dois pensadores (o brasileiro e o francês) já assinalados.
No segmento narrativo-ficcional do capítulo CINCO: FERREIRA, (não confundir com narrativa épica), a chamada narrativa de acontecimento (marca das narrativas do século XX), diferente das narrativas de personagem do romantismo e das narrativas de espaço do realismo-naturalismo, se faz visível. Para penetrar no Palácio de Pierre Bataillon, o narrador-personagem Ribamar de Sousa utiliza-se da técnica ficcional do acontecimento fantástico, uma vez que não há nada que explique como Ribamar se salvou, depois do incêndio da Floresta, onde pereceram seus “parentes”, o tio e o irmão. Pelo ponto de vista dos estudos semiológicos do texto ficcional (de segunda geração), tal impasse narrativo é denominado como narrativa de acontecimento, modalidade fantástica, justamente porque não há as tais explicações lineares, e o personagem se recupera no plano das probabilidades existenciais sem se lembrar dos detalhes do acontecimento insólito. Entretanto, ainda de acordo com a semiologia de segunda geração (Greimás, Roland Barthes, Anazildo Vasconcelos), o personagem se restaura de uma forma diferente da anterior, ou seja, o Ribamar não mostrará mais a face do retirante nordestino, assumindo, por outro lado, as feições do político manauara. Recuperando aqui as diretivas foucaultianas: se antes faltou ao estudioso francês o “regime discursivo”, dos efeitos do poder próprios do jogo enunciativo, para teorizar sobre as palavras e as coisas, em seu livro do mesmo nome, preso que estava, à época, às normas do poder estruturalista, atualmente já há como desenvolver um pensamento interpretativo, mesmo que este se volatilize a partir do próprio estruturalismo. Para repensar este capítulo do romance, não há como sistematizá-lo em um só paradigma teórico. A própria escrita telegráfica do primeiro parágrafo assim o impõe. São períodos curtos, são flashes instantâneos, como bem explica o narrador Ribamar de Sousa: “Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa” . Nestes aparentes flashes fracos (flashes fortes), o narrador-personagem sintetiza uma cena cinematográfica que poderia preencher páginas e páginas de escrita paraliterária. No entanto, com poucas e criativas palavras, o narrador ficcional pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração conduz os leitores a uma cena ímpar: o aparecimento de Ribamar, depois da interseção ígnea, no cais fluvial de Pierre Bataillon, trazido pelas águas, como Moisés do Egito.
Ainda, repensando a questão pelo prisma foucaultiano, “a problemática da população” e “a arte de governar”, naquelas paragens amazonenses próximas às fronteiras da Bolívia e Peru, nos séculos XVIII e XIX, não se originaram do governo familiar de modelo colonial português, ao contrário, o modelo familiar amazonense, principalmente o da capital do Estado, até aos dias de hoje, reflete o modelo familiar francês e uma certa influência alemã, herdada naturalmente do convívio da população citadina e ribeirinha com os padres alemães e prussianos, das congregações católicas que por ali se aclimataram. Influências marcantes, também, poderão ser diagnosticadas, levando-se em consideração as grandes expedições de estudiosos franceses e germânicos da fauna e flora da região amazonense e adjacências, e do domínio centralizador e familiar de muitos desses estrangeiros que se colocavam como donos (e se colocam ainda) de extensões e extensões da Grande Floresta, desmatando-a implacavelmente, além de subjugar a população nativa e os retirantes nordestinos, que para ali se deslocaram, nas épocas das grandes secas, em busca de melhores meios de vida. O próprio romance rogeliano oferece-me pistas reveladoras.
No decorrer do século XX, o capitalismo primitivo, originário da Revolução Industrial do século XVIII, conhecido por “capitalismo selvagem” (dezesseis horas de trabalho por dia, ou mais), foi se modificando gradativamente, e, já nos anos finais do referido século passado, conheceu uma nova forma de ser entendido em termos mundiais. Antes, no Brasil especialmente, era a escravidão explícita ou camuflada do trabalhador assalariado: horas de trabalho além do normal e dívida permanente para com o empregador, uma vez que o “patrão” era também o dono dos postos de venda de mercadorias necessárias à sobrevivência de seus empregados (carne-seca, farinha de mandioca, açúcar, sal, etc.).
Posteriormente, o “capitalismo primitivo” passou a ser reconhecido mundialmente como o capitalismo da “selvagem” rivalidade entre poderosas multinacionais, provenientes dos vários mercados internacionais e, principalmente, dos chamados “países progressistas”. No Brasil, esta praga capitalista alastrou-se, ao longo da segunda metade do século XX (incluindo também os vinte anos de Ditadura Militar, de 1964 a 1984) com a conivência dos governantes afiliados aos chamados Partidos de Direita, submissos às decisões das políticas estrangeiras do Primeiro Mundo. Entretanto, neste início de século XXI, as diretivas políticas brasileiras tendem para uma saudável forma mediadora entre o capitalismo e o socialismo, ou seja, uma orientação governamental firmada em conceitos socialistas, mas que não abomina as boas coisas públicas herdadas do capitalismo já em vias de decadência. A grande verdade é que, neste início de século e de milênio, os grandes troncos políticos familiares, os quais direcionaram por anos e anos a política brasileira, já estão vivenciando o momento do declínio. Os herdeiros políticos destes antigos “coronéis” invencíveis já não têm a mesma força de seus antecessores. Neste aspecto, repenso as palavras de Michel Foucault: Se a “população desbloquear a arte de governar”, à moda do século XVIII, e “eliminar o modelo de família”, as transformações políticas virão naturalmente.
Penso que, nos anos finais do século XX, no Brasil, os governantes de direita se viram obrigados, historicamente, mesmo atrelados às formas governamentais do capitalismo selvagem, a agirem (talvez inconscientemente ou, quem sabe, propensos à chamada egolatria) submetidos às exigências da população (do povo), ansiosa por desbloquear a arte de governar capitalista primitiva, respaldada aqui pelos troncos políticos familiares. As novas exigências do capitalismo selvagem - para sobreviver e progredir - propiciaram a transformação em nível nacional, pois estavam necessitadas do combustível da troca monetária. Se o poder monetário, um poço mais alargado, pode favorecer o ressurgimento de novos apelidos, os quais originaram/originarão novíssimos troncos familiares, isto prova uma retomada consciente do povo ante seus “interesses individuais” e “gerais”. Ante ao nascimento de uma nova tática e técnica administrativa governamental, as anteriores ondas capitalistas tiveram/terão certamente de se curvar. E isto se houver o “nascimento de uma nova arte” de governar ou “de táticas e técnicas absolutamente novas”, como afirma Michel Foucault.
Pelo prisma foucaultiano, e neste caso, reconsiderando o poder político no Brasil, na segunda metade do século XIX, repenso o poder inicial, ficcional, do personagem Pierre Bataillon sobre a população indígena do Alto Juruá, região que se localiza próxima à fronteira entre o Brasil e o Peru. Recuperando, diacrônica e sincronicamente, o processo histórico daquela já passada parte intransitável da região amazônica, próxima às fronteiras dos países que ficam ao norte da América do Sul, em princípio, o poder governamental da localidade estava (e sublinearmente sempre esteve) em poder das famílias estrangeiras que ali residiam e prosperavam, adeptas que eram dos regimes governamentais familiares. Nas páginas iniciais do romance, o poder capitalista do personagem Pierre Bataillon seguiu as regras de uma economia entendida como gestão de família.
Entretanto (não obstante a comparação histórica), estou a referir-me ao apogeu e declínio do Manixi amazônico ficcional, um lugar isolado ante o “novo” direcionamento do capitalismo mundial, naqueles anos iniciais do século XX. Graças a esse “isolamento” familiar, posteriormente, o poder político de Pierre Bataillon (a face ficcional dos antigos políticos manauaras) sofreu/sofre sérias derrotas, a partir das novas regras financeiras que já se avizinhavam. As multinacionais estrangeiras, construtoras da idéia de galopante progresso para a região, propiciaram a derrota do governante do Manixi, assentado que estava em uma arte de governar dominada pela estrutura da soberania individualista do poder patriarcal familiar.
A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas. Lembremo-nos de que foi o poder político do Barão de Mauá (dominado pelas técnicas de governo à moda do século XVIII, oriundas da Revolução Industrial) que propiciou o progresso daquela região da Floresta Amazônica nos anos iniciais do século XX. O século XVIII foi o momento da passagem do regime dominado pela estrutura da soberania para um regime dominado pelas técnicas de governo, e a “novidade” política européia, daquele século, atingiu a forma de governo dos séculos XIX e XX no Brasil. As populações indígenas e caboclas do Alto Juruá, naqueles anos finais, já republicanos, do século XIX e início do século seguinte, tornaram-se, se me adéquo às palavras de Foucault, o ponto em torno do qual se [organizou] aquilo que nos textos do século XVI se chamava de paciência do soberano, no sentido em que a população [seria] o objeto que o governo [brasileiro] [deveria] levar em consideração em suas observações, em seu saber, para conseguir governar efetivamente de modo racional e planejado, uma vez que, a partir de então [talvez, fosse esse o ideal, o qual não se realizou à época], o povo iria começar a exercer a sua soberania por meio de seus representantes legais. (Entretanto, no Brasil, sabemos que o chamado “voto de cabresto” vigorou, durante vários anos, no decorrer do século XX). Então, a paciência do soberano [do governo republicano brasileiro], à época, valeu-se do conhecimento técnico do Barão de Mauá e de seus engenheiros, capacitados que estavam para levarem adiante as propostas republicanas de um governo racional e planejado. A segunda parte do romance rogeliano, quando, no capítulo oito, aparecem “ratos” na narrativa, propiciando as indagações do leitor atento (Quem está despojando a grandeza da Floresta Amazônica?), surge para denunciar, sublinearmente, as frestas negras da ambição desmedida (familiar) que proporcionou o declínio do imperialismo da borracha, a partir de seu representante ficcional Pierre Bataillon.