O Fascínio e o Fetiche
Por Cunha e Silva Filho Em: 03/10/2008, às 19H51
Nunca consegui entender aquela visão extraterrestre que, para mim, mais parece um pandemônio, uma Babel sem torre. Aqueles homens, alguns com mangas meio arregaçadas, nervosos, por vezes descabelados, sentados diante de computadores da última geração, ou em pé numa mixórdia, cujos signos mais concentrados vêm a ser os da gestualidade e da gritaria, me fazem lembrar uma narrativa sobre a loucura humana, cuja intriga se passa na espaço vertiginoso das ações da Bolsa de Valores.
Não consigo também atinar se aqueles homens estão brigando ou se estão simplesmente se comportando segundo padrões de estilos de trabalho que para eles são a coisa mais normal e rotineira. É preciso que eu me justifique sobre essa minha visão particular e um tanto quanto desfavorável.
Até hoje só vejo a cena pela TV. Nunca lá estive para entender daquele riscado.Não é que tenha aversão ao vil metal. Acho mesmo que, sem ele, não poderei sobreviver entre os mortais. Entretanto, no mundo dos títulos, das cotações, das altas e baixas das moedas e sobretudo da moeda-símbolo do capitalismo globalizado, dos pregões, dos dividendos, das perdas e ganhos, dos overnights das aplicações no world business, me sinto – mesmo estando fora dos umbrais daquele ambiente -, um ser diferente, anormal, uma criatura bizarra, que não se amoldou até agora à avassaladora onda esmagadora do resto da minha individualidade.
Me vejo tão diferente daquele aglomerado de homens cercados de máquinas eletrônicas, de gadgets, de telões planetários, de gigantescos quadros indicadores de cotações cambiais e de posições acionárias naquele painel constantemente se modificando numa velocidade que por vezes dói nos olhos com cifras marcadas de números em escalas decimais que, ao final e ao acabo, só me sobram na vista o desenho último da cena: homens em movimentos frenéticos, com telefones ou celulares nos ouvidos. Homens automáticos, com pensamentos com o pé nos riscos ou nos lucros estratosféricos – delícias das delícias no paraíso profanado de Adão e Eva.
Até que ponto trabalhadores desse ofício conseguem transmitir-me um pouco que seja do que defino como ações humanas voluntárias e conscientes? Porque cada gesto, cada movimento, cada grito me soa como algo muito mecânico, algo bem aproximado dos limites das possibilidades robóticas.Tenho para mim que, naquele mundo às avessas, tudo parece ser simples e normal.
No entanto, a mim se me afigura um universo surreal e insuportável, talvez não pela mera exterioridade da sua simbologia, mas pelo que encerra de complexidade de sua estrutura interior, de realidades e mecanismos próprios, com seus pressupostos somente elucidados se recorrermos ao domínio filosófico. Provavelmente, Platão (c. 429-c.347 a.. C.) com as suas Idéias e com o “mito da caverna” nos pudesse explicitar esses recônditos espaços da realidade nos seus fins últimos.
O que faz o homem agir levado só por valores materiais, no caso, valores financeiros? A especulação de mercadorias, de bonds e shares, algum dia já produziu algum bem que se possa considerar útil? A valorização de um produto mercadológico já trouxe algum benefício ao aperfeiçoamento do indivíduo?
Não há aqui senão recorrer ao tema da reificação, tão atual como nunca o fora e tão aplicável a uma parte bem considerável da humanidade, entendida esta nos seus vários estratos sociais, desde que comece a ter alguma consciência do valor do dinheiro e dos bens móveis e imóveis da riqueza de nosso planeta.
Minha mulher, que tem a sabedoria da experiência e o dom da inteligência pragmática, de vez em quando, me faz essa observação: - “Tenho receio de que, menos dia, mais dia, o ser humano se transformará numa cédula,” Não está aí, leitor, um bom exemplo de reificação? Estou me lembrando do famoso personagem de Graciliano Ramos ( 1892-1953) do romance São Bernardo(1934)
Típico exemplo do personagem-símbolo da reificação. Ao desejar adquirir tudo, ou melhor, se apropriar de tudo, por bem ou por mal, atropelando Deus e o mundo, Paulo Honório, a certo passo da sua narrativa, mostra até que limite leva a sua visão coisificada da vida. Ao afirmar que (...) “Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabricava (grifos meus) às dúzias” ( RAMOS, Graciliano. 28 ed. São Bernardo(Rio de Janeiro: Editora Record, 1977, p. 105), não está mais do que reiterando essa visão mercantilista que o fazia colocar numa escala de valor superior a sua “fazenda” e não a pessoa de sua esposa professora, a infeliz Madalena, terminando por conduzi-la ao suicídio. Note-se, ademais, que o lexema “fabricava” pertence ao campo semântico do universo reificado
Será que, algum dia, irei ainda compreender que o mais significativo, nesse mundo de Deus, é o cifrão? Ou continuarei sempre procurando decifrar os enigmas que cercam os templos pagãos das Stock Exchanges – fascínio e fetiche do homem capitalista?