O ESPAÇO REDIMENSIONADO DA FICÇÃO

O ESPAÇO REDIMENSIONADO DA FICÇÃO

(texto sem formatação)


Bella Jozef *

Em seu último livro publicado, Cidade Calabouço (1973), i o romancista
Rui Mourão amplia a visão de As Raízes (1956) e Curral dos Crucificados
Í1971). Apesar de manter com as anteriores estreita identidade de intenções,
Cidade Calabouço manifesta visível amadurecimento do ficcionista que desvela
um mundo em crise. Constitue, a nosso ver, obra importante da ficção
da atualidade brasileira, que vem ao encontro das tendências da literatura
universal de vanguarda.
No nível semântico, o livro de Rui Mourão pertence ao "realismo mágico",
termo que necessita ser explicitado, por haver adquirido conotação
demasiado abrangente. Manifesta-se uma concepção poética da realidade,
¿través de metáfora literal ("imagem tensa e condensada" p. 29) que anula
o princípio da identidade e o conseqüente pensamento lógico. O processo cognoscitivo
leva-nos a uma apreensão da realidade empírica. A intuição acrescenta
a esse conhecimento a crença numa realidade supra-real. Ao unir
ambas visões, o homem ve-se diante de um todo. Para a mente mítica, o
empírico e o não-empírico possuem o mesmo grau de irrealidade. Ao eliminar
desta os princípios lógicos, perde-se a irreversibilidade do tempo e a dimensão
unívoca do espaço. Assim, nega-se a unidade e finitude dos fatos e
a necessidade teórica dc que um fato seja considerado único em um tempo
c espaço determinado. Na visão mítica da realidade, nada é estático, invariável
nem unívoco. As passagens de um segmento a outro têm lugar no que
Mircea Eliade chama de "tempo sagrado". Este difere do "profano" em sua
reversibilidade:
O tempo sagrado é recobrado e repetido indefinidamente (infinitamente).
Poderia dizer-se que não "passa", que não constitue uma
duração irreversível. É um tempo ontològico. "Parmidesiano"; sempre
permanece igual a si mesmo, não muda nem se esgota.

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• Doutora em Letras Neolatinas, Livre Docente de Literatura Hispano-Americana,
Catedrática Honorária da Universidade Mayor de San Marcos (Peru), Bella Josef
é Professora Titular de Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Letras
da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Além de inúmeros artigos em revistas
especializadas e suplementos literários publicou na Vozes História da literatura
Hispano-Americana (1971) e Espaço reconquistado (1974).
1 MOURÃO, Rui. Cidade calabouço. São Paulo, Quirón, 1973. 108 p.
2 ELIADE, Mircea. Le sacré et le profane. Paris, Gallimard, 1965. p. 69.
letras, Curitiba (251: 29-33, ¡ul. 197Í 2 9




O tempo mítico e o espaço mítico estão em um estrato definido. Dada
a contínua fluidez da vida são possíveis as passagens de um modo existencial
a outro e também de um tempo e um espaço a outro. Isto eqüivaleria a uma
superposição dos estratos empíricos e supra-real, sendo o primeiro o nível
onde ocorrem os fatos segundo leis lógico-causais e o segundo o meio, a
passagem que o unifica no todo.
Também a mitologia complexa de Cidade Calabouço o coloca na categoria
neo-barroca, por atualizar uma série de características surgidas na
época trágica e dinâmica do Barroco, sugerindo uma sociedade em crise,
"na prisão entre quatro paredes" (p. 17). A linguagem acumulativa e reiterativa
assinala o neo-barroco: a descrição amplia-se pela enumeração.
0 espaço é um dos elementos estruturantes da ficção. Todo romance está
ligado ao espaço, implicado pela ação ou pelo personagem. A representação
espacial tem-se modificado ao longo dos tempos. Era evocado como pano de
fundo, diante do qual agiam os personagens. Quase não era apresentado
como realidade vivida pelo personagem — experiência perceptiva e subjetiva.
As formas, as cores, os primeiros planos e os longínquos, tudo isto era o
cenário. Os elementos que, acumulados quantitativamente, visavam a criar
um efeito de real, através da objetividade, satisfaziam a uma exigência da
escola naturalista. 0 princípio de seleção era abandonado em função da buscada
exatidão. O realismo vincula o espaço às ações. Seleciona os detalhes,
atuando metonimicamente. Em Balzac, o espaço não é apenas o quadro de
uma ação romanesca, é o meio no qual ela se banha e ao qual se liga por mil
laços: O drama está inscrito nos lugares antes de o ser no desenvolvimento
de uma narrativa e o espaço é o avesso congelado de uma ação temporal.
Balzac pintou um mundo pleno; o espaço nele é o lugar de uma realização.
Nos últimos romances de Hugo e frequentemente em Zola o espaço se impõe
ao espírito do leitor como o desdobramento de poderes míticos. A partir
de Flaubert assistimos à promoção do espaço suscitado como uma presença,
r, percepção por uma consciência do universo sensível do espaço e do tempo.
O abandono da visão onisciente do narrador é substituído pela ótica de uma
consciência: o espaço passa a dizer não do mundo mas da consciência que
o reproduz. 3 Marcado pela subjetividade, o espaço existe a partir da percepção.
Transfigurado pelo mito ou pela desmitificação da escrita, o espaço
assume em Cidade Calabouço uma função em que predomina o valor simbólico,
o espaço dc transformações, disfarces e conversões, onde se desdobram
os signos. O espaço constitui-se como objeto estético. Ê verdadeiro
"topos" simbólico de um sistema de valores. Supõe realidade exterior ao
texto, a literalidade da escrita. A aparente exterioridade do texto, a superfície
é uma máscara que nos engana,
3 AUERBACH, E. À l'hotel de la mole. In: . Mimesis. Paris, Gallimard,
1968. p. 465-88.


3 0 letras, Curitiba (251: 29-33, jul. 1976


JOZEF, B. O espaco redimenclonado da ficção

já que se há uma máscara, não há nada detrás, impede que a consideremos
como superfície. A máscara nos faz crer que há uma
profundidade, mas o que esta máscara é é ela mesma: a máscara simula
a dissimulação para dissimular que não é mais que simulação.4

Espaço mitico

Uma cidade se ve mergulhada num carnaval que se eterniza (p. 53),
institucionalizado através de decretos e auxílios da Prefeitura: "Prefeito Nicanor
Bramante defende o direito de cada um ter a sua fantasia" (p. 22).
Nesse espaço mítico instaura-se uma dimensão alegórica que mantém a
ambigüidade da matéria ficcional. Em nenhum momento a obra constitui
exercício estilístico gratuito: a transcendente presença do Carnaval revela
uma dimensão mítica. Tempo e espaço se integram e interlacionam. O romancista
abandona o fluir cronológico ou mesmo interior da aventura humana,
em acumulação de acontecimentos no espaço dominante, numa verdadeira
estrutura caleidoscòpica. O espaço é dominado por grande comoção
coletiva. O indivíduo, na época contemporânea é substituído pela massa, manifestando
as inter-relações de uma coletividade, de uma cidade, daí o epicismo
(já assinalado por Fabio Lucas)-5 O antropocentrismo renovado luta
por recuperar o sentido em um mundo que exclui o homem. Os românticos
já tentaram reagir contra a violação da unidade básica integrada pelo eu e o
universo. A alienação do homem reduziu-o a uma acumulação de fórmulas
previsíveis que impossibilitaram uma procura ontològica.


Carnavalização e simbolismo

Pensar o mundo no espaço e não no tempo, através da simultaneidade,
adivinhar suas relações sob o ângulo de um momento único, confere ao momento
presente múltiplas possibilidades, um sentimento cósmico de presente
eterno: as ações são reunidas numa aproximação dramática em lugar de
devir. Ë uma realidade dinâmica que se estende espacialmente, um mundo
se fazendo.
A natureza espacial predominante em Cidade Calabouço, entre outros aspectos,
coloca-o na textura do carnavalesco e do simbólico. A narrativa de
predominância paródica, como esta, diminui o projeto humano, baixando a
estatura heróica. No sistema narrativo. Rui Mourão coloca elementos aparentemente
em oposição, que interrompem a narraçãò, opondo o modelo à
paródia. O agenciamento dos pormenores num contexto de paródia, onde as
exigências da narração contrariam a continuidade num sistema de espelhos
deformantes fazem do leitor cúmplice, frustrando o desejo de ordem e de
coerência, enquanto o autor lhe impõe uma nova figura da ordem: o fan-
* BAUDRY, Jean Louis. Ecriture, fiction, idéologie. Tel Quel, Paris, (31):15-30,
1967.
fi LUCAS, Fábio. Tensfio e inércia em Cidade calabouço. Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2 mar. 1974 Suplemento literário, p. 8.
Letras, Curitiba (25): 29-33, Jul. 1976 3 1


JOZEF, B. O espaco redimencionado da ficção


tástico. Coloca o leitor dentro do quadro do fantástico e situa a ficção dentro
do universo temporal do leitor. As alusões a lugares reais enraízam a
ação na "realidade" tentando autentificar a organização, narrativa e seu funcionamento
fictício por um envio à dependência referencial. Dumézil coloca
a passagem do mito ao romance neste processo. Para Lacan, o real é o que
se exclui do processo da simbolização, a realidade será o próprio imaginário,
um pedido de reconhecimento dos feixes de significados onde se fala da
vida. Essas alusões reforçam um desenvolvimento farsesco com o qual a realidade
nada tem a ver: "Avenida Amazonas, ao lado do Cine Brasil", "Praça
Sete". "Xique-xique Carnaval Belorizontino" e singularizam, numa postura de
participação crítica, a dcsautomatização. A paródia, o disfarce, o burlesco
ião da mesma ordem, embora de natureza diferente. Esses instrumentos
do cômico nos enviam, assim como a ação, a um contexto que parece deslocado.
O desenvolvimento é aberto, dialógico. .A representação formal do
caos obtém, ao nível da forma, um efeito de descontinuidade. A intriga caracteriza-
se por um encadeamento de ações e motivos, através de desenvolvimentos
parciais, que vai paralelo à afirmação de um sistema de valores,
por ambíguo que seja. A arte torna-se meio de "introduzir um princípio de
ordem no universo":
Porque quem vive é para se assustar de repente esquecido até
que existiu, é para enfrentar os momentos explodidos alucinantes
e sobrar com a glória instantânea de haver desafiado o próprio
caos (p. 10-11).
O Carnaval, situado num espaço neutro e um tempo que não é o da
vida cotidiana torna-se um modo de pensamento e uma maneira de agenciar
esteticamente. Por sua natureza ritualística, apresenta a vida "às avessas",
através da relatividade dos valores.
O homem, dissociado das forças cósmicas e alienado da realidade pela
redução do conhecimento ao estritamente empírico, procura sua essência
perdida ("numa lembrada esquecida presente consciência de manhãs frescas
e orvalhadas" — p. 63) através de um redimensionamento do mito. O
tempo perde sua irreversibilidade e o espaço a unicidade, o que possibilita
a passagem de um tempo a outro e a superposição de planos espaciais. Permite
ser dentro de uma dinâmica, como a acumulação reiterativa de verbos
ou núcleos nominais: "todo mundo já corria se jogava, perseguindo empurtando
a emoção" p. 1). A multidão frenética irá ser comandada por Dionisio,
figura arquetípica, e iniciará o sacrifício dos retirantes, o único grupo
sedentário dentro da coletividade descrita. O mito do caos primogênito e o
do Apocalipse conjugam o feixe de significantes para uma leitura do mundo
contemporâneo, encerrando as personagens num sistema de relações de força
magicamente instauradas. A vida encontra-se lado a lado da arte, que
mata e ressuscita a realidade no momento em que a faz significar.
3 2 Letras, Curitiba (251: 29-33, ful. 197Í
JOZEF, B. O espaco redimenclonado da ficção


REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
AUERBACH, E. Mimesis. Paris, Gallimard, 1968 . 559 p.
BAUDRY, Jean Louis. Ecriture, liction idéologie. Tel Quel Paris, (31): 15-30, 1967.
ELIADE, Mircea. Le sacré et le protane. Paris, Gallimard, 1965. 188 p.
LUCAS, Fabio. Tensão e inércia em Cidade calabouço. Minas Gerais, Belo Horizonte,
2 mar. 1974. Suplemento literário, p. 8.
MOURÃO, Rui. Cidade calabouço. São Paulo, Quiron, 1973. 106 p.




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