O escritor de ficção

Moisés Neto


"DONA SINHÁ E O FILHO PADRE" (NOVELA-1964)


Gilberto de Mello Freyre nasceu e morreu no Recife (1900-1987). Estudou na infância com franceses e ingleses e no Colégio Americano Batista, Recife. Formou- se em Ciências e Letras. Especializou- se em Ciências Políticas e Sociais nos EUA . Cursou Mestrado e Doutorado na Universidade de Colúmbia. Em 1926 lança com outros intelectuais nordestinos o "Manifesto Regionalista", onde defende os valores desta região e em 1933 ficou famoso com a publicação de "Casa Grande & Senzala ", uma análise da formação da formação do povo brasileiro(nordeste). Pelos títulos dos seus livros, temos uma idéia do caráter de sua obra:


"Guia prático, histórico e sentimental do Recife"(34),"Sobrados e mocambos"(36), "Nordeste"(37), "Conferências na Europa" (38), "Açúcar: algumas receitas de bolos e doces dos engenhos do nordeste" e "Olinda: 2º guia prático , histórico e sentimental da cidade brasileira" ilustrado por Manuel Bandeira (39), "Um engenheiro francês no Brasil" e " O mundo que o português criou" (40), "Região e tradição", ilust. Cícero Dias (41),"Ingleses"(42)


"Problemas brasileiros de antropologia"(43), "Perfil de Euclydes e outros perfis" (44) , "Sociologia: introdução ao estudo dos seus princípios"(45), "Interpretação do Brasil"(47)"Assombrações do Recife velho"(55) , ""Arte, ciência e trópico"(62), "O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX "(63), "Recife , sim! Recife, não!" (67), "Brasil, Brasis, Brasília" (68), "Nós e a Europa germânica"( 71), "Alhos e bugalhos" (78), "Heróis e vilões no romance brasileiro" (79), "Gilberto poeta: algumas confissões" e "Poesia reunida"(80), "Ferro e civilizações"(88) e outros , dentre os quais a novela "Dona Sinhá e o Filho Padre" de 1964.


Gilberto queria chamá-la de seminovela. O livro ganhou nova edição em 2000 pela Ediouro Publicações do Rio de Janeiro(254 páginas) e foi selecionado pela Universidade de Pernambuco, para o exame de seleção de entrada(vestibular 2001). Ele se pergunta: "Afinal o que estou escrevendo é ensaio ou romance? Dissertação ou novela?"(Página 63). É o que chamamos metanarrativa (o narrador questiona-se)


Vejam: Novela é uma narrativa curta, próxima da realidade. Surgiu no início do século XX a antinovela, espécie de abstracionismo literário, sem personagens ou trama. Na década de setenta Clarice Lispector publicou "Água Viva", nesta linha. Já o que Gilberto propõe é algo semelhante ao cubismo (estilhaçar a realidade).


Dickens, Thomas Mann, Tolstoi, Proust e Melville são alguns escritores que inspiraram Freyre a misturar realidade histórica com subjetivismo, como fez Defoe na Inglaterra do século XVIII com "Jornada do Ano da Peste" e "História da Peste". Mas o mestre de Apipucos (local de sua residência-Recife) apoia-se até em manuais técnicos e científicos da polícia moderna: "São técnicas que aplicadas à pesquisa histórica e sociológica, podem resultar em descobertas decisivas, à base de indícios que supram os documentos completos". Daí os experimentos freyrianos como "Casa Grande & Senzala (de 1933) e este "Dona Sinhá" , que de certa forma, analisa a formação de padres no nordeste.


Já o ultra-realismo que Gilberto esboça (ao modo de Raul Pompéia de "O Ateneu") ou o seu neo-naturalismo ( que é como Ariano Suassuna chama o regionalismo modernista do tipo praticado José Lins do Rego de "Fogo Morto") nos fazem lembrar a deliciosa prosa de Guimarães Rosa, que tentou como ninguém esboçar/reconstituir o caráter psicológico da personalidade brasileira.
Se procurarmos o enredo de "Dona Sinhá e o Filho Padre" , ou buscarmos profundidade na criação dos seus personagens , nos depararemos com uma trama frágil, com personagens superficiais . Cubisticamente: os personagens são como "coisas/ pedaços" que formam um painel da formação da sociedade recifense na segunda metade do século passado.


O tom de saudosa evocação do Largo de São José (Recife), dos carnavais, dos vultos históricos como Nabuco e Dom Vital é filtrada por uma ótica que beira a irreverência.


O cheiro de munguzá, tradicional nas manhãs de Domingo daquela época, os pescadores, a praia, a Casa de Banhos sobre os arrecifes, um passeio de jangada nas águas "tanto azuis, quantos verdes do litoral pernambucano", quando O Recife visto do alto- mar parecia "pequeno como uma cidadezinha de presépio" (pág-89).

Este livro é uma "aventura inovadora", uma "noveleta" , até certo ponto picaresca pelo tom "brincalhão " do narrador. Por exemplo ao falar das fezes dos franceses , diz serem das mais podres que apareceram no nordeste. Comenta o tamanho do pênis de Nabuco, descreve alguém caricaturando Dom Vital num desfile do carnaval de 89, trata o personagem principal (José Maria) como se fosse uma "Sinhazinha", caricaturando- o até na hora da morte.


Se fosse um cordel um bom título seria: "A estória de Dona Sinhá e seu Filho Padre e o Seu Amigo Afrancesado". Cujos personagens são:

SINHÁ - Uma "Iaiá loura " com "remoto sangue ameríndio". Afrancesada, estudou no tradicional Colégio de São José, das irmãs Dorotéias, interna, no Recife. A sala dela lembra um teatro de arena e o bairro onde mora, São José, parece "uma aldeia simples e modorrenta, cenário de teatro pobre". É mãe de José Maria, fez promessa que se ele escapasse de uma diarréia, quase fatal, tornaria- se padre. Da tradicional família Wanderley.


JOSÉ MARIA- No colégio foi brilhante, menos nas "contas". Estudou para ser padre seguindo a promessa da mãe, morreu tísico antes de ordenar-se. Sentiu amor platônico por Paulo que o defendia na escola. Sem Paulo, J.M. teria se tornado um pederasta passivo, talvez. Foi muito mimado em casa pela mãe viúva, que o tinha como um santo: "um meninozinho- Deus" (p-98), e pelas negras que o paparicavam demais. Fascina- se quando ouve falar em Iemanjá.


INÁCIA- Negra de confiança da casa de Dona Sinhá.


JOÃO GASPAR- Irmão e Sinhá. Tenta fazer de José Maria, um macho, para que ele assuma a fazenda Olindeta, engenho da família, já que apesar de mulherengo, Gaspar não tem filhos.


O NARRADOR- Apesar de não ter nome, é apenas "parente dos Wanderleys", (talvez seja o próprio Freyre) . Sua maneira de narrar é personalizada, coloca-se como participante dos acontecimentos , servindo de interlocutor em diversas partes da novela.


PAULO TAVARES- Médico . Nutriu uma espécie de amor por José Maria, durante a adolescência de ambos. Descobriu nele "uma graça diferente" das que encontrara nas "mulheres de várias cores com quem tivera relações de cama ou de esteira, sofá ou rede" e que encontrou também nas pinturas da igreja(baseada na arte grega, tornada mística pelo catolicismo- anjos e santos representados muito jovens.


TAVARES- Pai de Paulo. Criava pássaros e fazia gaiolas por lazer. Negociava com açúcar. Ficas triste quando o filho vai estudar medicina na Europa.


TEREZA- Mãe de Paulo. Já está viúva quando o filho volta formado.


DOM VITAL- Bispo capuchinho, politizado, enfrentou a maçonaria em Recife, não se curvou ao imperador, foi preso. Sua história é narradas em várias páginas do livro. O "amarelinho" do interior de Pernambuco, que sofreu num mosteiro na França e fez-se "macho". É comparado com José Maria, frutos da formação de padres.


LUZIA- negra verdureira no Recife.


CHICO CANÁRIO- Branco, marido de Luzia, prezava mais a liberdade do que o dinheiro. Vendia pássaros ao pai de Paulo. Tratava bem de animais e era requisitado para curá- los. Foi na casa dele que Paulo viu Joaquim Nabuco a primeira vez.


NABUCO- Abolicionista. Mesmo caso de Dom Vital. Não é personagem da novela, porém várias páginas lhe são dedicadas.
O livro é dedicado a Jorge Amado e a Guimarães Rosa: "Novelistas esplendidamente completos, cada uma a seu modo", sentencia o mestre.


O narrador diz que vai escrever a vida de um "santo ignorado"(p-24): "Eu estava mergulhado numa aventura psíquica talvez única(...)uma espécie de sessão de espiritismo"(25). Entre uma canjica de São João, e o filhós do carnaval, o sarapatel, o peixe cozido bem temperado, a feijoada, o molho de pimenta, ficamos sabendo que o namoro de Gilberto Freyre com a ficção não é platônico, porém a história é "senhora absoluta" de suas letras.


José Maria é analisado pela ótica naturalista, onde sexo e perversão se confundem. Mas, para nosso "filho padre", Jesus "se tornaria o seu Deus e o seu homem únicos. A Igreja tem dessas vitórias sobre a própria natureza." (32).
O livro analisa a família Wanderley (fracassados, difamadores, admiradores de mulatas e detratores de mulatos, retardados no pensar em sua maior parte). O narrador desabafa: "Sou um indivíduo deformado pela preocupação sociológica com as coisas históricas" (38).

"Apaixonar- se por uma senhora com idade de ser sua avó", Oswald de Andrade é mencionado quando Paulo pede Dona Sinhá em casamento, ele vê nela traços do finado José Maria (ela recusa e pede que ele reze pelos dois).


A narrativa rompe com a linearidade e ora vemos um José Maria criança (cometendo o "pecado africano. Feitiço. Mandinga" com a sua "tetéia"- a masturbação), ora adolescente sentindo perigo e "um toque de amor ou não sei o que de sexo"(63) no beijo na boca que levou de Paulo, ora homem (jamais freqüentaria, como o tio Gaspar, a Rua do Fogo, local de prostitutas. Vai para o Seminário em Olinda).


"O filho de Dona Sinhá morreu semivirgem(...) ele não era um lúbrico acanalhado (...) um pederasta passivo que servisse de mulher aos ativos" (142). Vemos aqui um pouco do Naturalismo e do escritor pernambucano Nelson Rodrigues e seu jogo de perversões.

1889 marca o final da narrativa. Os desfiles de carnaval no Recife onde "gente de cor pulava, saltava e cantava" com seu "resto de alegria africana" (183) ao lado da burguesia: "A República e a Abolição já não empolgavam os brasileiros (...) Os de Pernambuco mostravam- se desorientados".


Há passagens inesquecíveis e poéticas nesta novela: Como jovens num barco ao luar fazendo serenata para as mocinhas nas varandas dos sobrados na Ponte D´Uchoa (Recife).


O último depoimento que o narrador apresenta é o de Frei Rosário: As palavras finais de José Maria, no leito de morte: "Iemanjá"... "Mãe"... e baixinho: "Paulo".


"Depois de beijado pela última vez por Dona Sinhá esboçou uma espécie de procura de outra boca que beijasse na própria boca(...)de um violeta pálido(...) beijos sem nenhum gosto de carne. Pelo que Frei Rosário levou aos lábios de José Maria seu crucifixo de capuchinho . Beijando-o morreu José Maria, com Dona Sinhá do lado (236) e partiu" agora em busca da mãe para ele eterna" (A Mãe de Jesus?) (p-237).


Assim o narrador conclui sua "novela".


 Moisés Neto é escritor, dramaturgo e colunista do Portal do Escritor Pernambucano.