Por Rosidelma Fraga
 
 
[...] Ó sustento dos deuses, ó perigo dos homens!
por auroras e noites perigosas 
tenho notícias da Grécia...
 (Gerardo Mello Mourão).

 
Neste ensaio preliminar, pretende-se realizar algumas tessituras teóricas em torno de teses relevantes do poema em estilo épico e do romance, tomando como base os estudos de Mikhail Bakhtin (2002), George Lukács (2000), Aristóteles (1987), Hegel (1997), Theodor Adorno (2003), Walter Benjamin (1980) e alguns comentadores de Lukács e Bakhtin como Letízia Zini Antunes (1998) e Ana Mafalda Leite (1995), a fim de dizer a pertinência do epos do mundo moderno e contemporâneo, isto é, do epos pela epopeia, explicitando suas possíveis convergências e divergências.
Para arregimentar tais discussões de cunho temático, o corpus será constituído por uma das epopeias do ciclo troiano, Ilíada, de Homero, o romance de intenção épica, Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, Invenção do mar, de Gerardo Mello Mourão e suas cartas violadas, acrescentando o poema “Os cavalos de Aquiles”, de Konstantinos Kaváfis. No limiar do texto, torna-se imprescindível associar teoria e texto literário com objetivo de buscar comprovações de teses ou antíteses acerca do estudo em questão.
Considera-se como pontos fulcrais o personagem de ficção, o papel do poeta e ou narrador, bem como a estrutura do texto épico para fomentar a discussão proposta. Acrescenta-se, como advertência ao leitor, que não se fará análise da obra literária e essa funcionará como articulação ao ensaio conciso, tendo como base o epos pela epopeia e pano de fundo a personagem de ficção.
Inicia-se pela acepção de epos dada por Gerardo Mello Mourão e depois com Ana Mafalda Leite. Conforme Mourão, em suas cartas violadas (apud MARTINS[1]),
 
 
[...] o  epos, o nome, a palavra, e também o oráculo, segundo os gregos. O puro nome é o mero oráculo. Os que não conhecem oráculos, nunca ouviram vozes, cegados e cegos por uma dimensão única da palavra em seu estado de história, também não sabem o que é a poesia. Vide Lukács, para quem o mundo de nossos dias já não cabe na poesia, muito menos na epopeia. A poesia e a epopeia são contemporâneas dos deuses.
 
 
Em suas epístolas Gerardo Mello Mourão explicita que se os deuses já estão mortos e o mundo moderno é possível com o romance e a novela e são as únicas narrativas possíveis num universo sem deuses. Entretanto, “se tiraram tudo ao homem de nossos dias, há uma coisa que permanece inconfiscável: o epos, o nome, a palavra substantiva, o oráculo” (MOURÃO, apud MARTINS[2]).
De acordo com a segunda estudiosa apontada no quarto parágrafo, o epos no romance instaura-se como resquícios da epopeia, visto que
 
 
[...] o conceito de epos é, pois, universal, enquanto atitude religiosa do homem nas civilizações antigas. O conceito de epos, enquanto recitação da epopeia, é posterior e particularizado de acordo com a cultura em que está inserido (LEITE, 1995, p, 13).
 
 
Pode-se elucidar que o epos enquanto epopeia do mundo antigo seria inviável na contemporaneidade se, por exemplo, o analista considerar o passado épico e a oralidade do estatuto do narrador. A rigor, o passado épico da Ilíada, em sentido de epos, recai sob as defesas de que sua lenda é inseparável do passado fechado:
 
 
[...] é fechado e separado pela barreira intransponível das épocas posteriores e, sobretudo daquele presente dos filhos e dos descendentes, que dura ininterruptamente, no qual se encontram o aedo e os ouvintes da epopeia, onde se desenrola o evento das suas vidas e onde se põe em prática a narração épica (BAKHTIN, 2002, p. 408-409).
 
 
 
Em efeito, pode-se dizer que o mundo do epos na contemporaneidade, de acordo com as concepções dantes mencionadas, não seria possível, tendo em vista a própria estrutura do romance e sua finalidade. O epos de que escreve Ana Mafalda Leite (1995) seria impossível no mundo moderno e contemporâneo, pois o gênero romance não é o lugar para a recitação e para o ouvinte como é o gênero épico do universo helênico.
Outro aspecto fundamental para explicitar a impossibilidade do epos pela epopeia no mundo moderno em contraposição a epopeia antiga é o abandono das regras fixas ou arquétipos estruturais a serem obedecidos e ainda a língua oral e a experiência do mundo lendário. Em relação ao aspecto da oralidade, cita-se Walter Benjamin (1980). Em O narrador, o assunto sobre a ingenuidade da épica soa plausível para a compreensão do epos. O autor assevera que “a relação ingênua entre o ouvinte e narrador é dominada pelo interesse em reter a coisa narrada, o porta chave para o ouvinte é garantir a possibilidade da reprodução. A memória é a capacidade épica” (BENJAMIN, 1980, p. 66). A propósito disso, observe-se que a lembrança enquanto memória é inerente à epopeia. Conforme Benjamin (1980, p.67), ela “é a musa da epopeia, ela funde a rede que todas as histórias interligadas formam no final”.
Sobre o discurso da lembrança, é fundamental a leitura do capítulo “Epos e romance”, pois o texto leva-nos a notar que a epopeia funciona como o lugar da memória e o romance como o espaço do conhecimento, porém Bakhtin jamais enunciou que o epos no mundo moderno não é possível e sim a epopeia. Nas próprias palavras do teórico russo entende-se que “no mundo épico não há lugar para o inacabado, para o que não está resolvido, nem para a problemática. A conclusão absoluta e o seu caráter acabado – eis os traços essenciais do passado épico, axiológico e temporal” (BAKHTIN, 2002, p. 408).
Sob esse prisma, o mundo épico do passado se constitui como uma impossibilidade da experiência individual por sua natureza, uma vez que tal passado caracteriza-se como absoluto e se faz como um tempo épico totalmente perfeito e fechado, como se presencia em a Ilíada; ao contrário do romance que se realiza como o inacabamento de princípio, utilizando a expressão bakhtiniana, ao dizer que o romance é um gênero vivo inacabado em constante evolução e a épica o gênero estático comparável às línguas mortas.  Nesse contexto, a Ilíada nunca poderia ser reinterpretada porque o passado épico é longínquo, fora do possível contato com o presente, visto que o epos na perspectiva adorniana explicita o identirário e exprime o formalismo ornamental de seu canto e nesse canto subjaz a ingenuidade da épica que para Adorno (2003) não é uma mentira, isto é, a ingenuidade da épica revela, de fato, o que aconteceu, contrapondo-se aos postulados da Arte poética, quando Aristóteles (1987, p.252) assevera que o objetivo do poeta consiste em narrar não “exatamente o que aconteceu, mas sim o que poderia ter acontecido, ou o possível, segundo a verossimilhança ou necessidade”.
Outro aspecto irrefutavelmente verdadeiro que distingue o herói da epopeia antiga do romance moderno e contemporâneo se refere à adequação e inadequação do personagem a seu destino e à sua situação. Percebe-se, por excelência, que enquanto o herói épico não está nada fora de seu destino, o herói do romance segue o papel da inadequação, pois “o personagem ou é superior ao seu destino ou é inferior à sua humanidade”. Em outras palavras,
 
 
[...] ele não pode se tornar inteira e totalmente funcionário, ou senhor de terras, comerciante, noivo, rival, pai, etc. Se um personagem do romance consegue-o, isto é, se ele se ajusta inteiramente à sua situação e ao seu destino, então o seu excedente de humanidade pode se realizar na imagem principal do herói; e este excedente sempre se realizará segundo a orientação formal e conteudística do autor (BAKHTIN, 2002, p. 425).
 
 
É imprescindível elucidar como exemplo e refutação que o epos não seria possível na contemporaneidade se o leitor contrastar o herói da narrativa romanesca com o herói da epopeia. Nota-se que esse, ao contrário do herói problemático do romance, não se preocupa com moral ou amoral, pois vive interligado às determinações dos deuses e nele não há sentimentos de ódio, vingança, amor e arrependimento porque tudo é inerente ao sujeito. O herói da epopeia mata e não sente remorso pela atitude e, sobretudo não há necessidade de perdão e/ou arrependimento. Logo ao final deste texto, verificar-se á o sentimento de remorso no poema “Os cavalos de Aquiles” que remonta a cena épica, com forte dicção do epos. No entanto, tudo é inerente ao sujeito e à situação. Há que se considerar, neste sentido, que de acordo com Lukács (2003) a dimensão temporal e do comportamento dos personagens não são relevantes, pois as ações se voltavam para um passado já realizado, com personagens planos e inquestionáveis, enquanto que no romance moderno as ações comportamentais dos seres fictícios são alteradas em decorrência dos conflitos individuais e das hierarquias de valores atribuídas a cada personagem, num universo narrativo em que tudo é imprevisível, opondo-se a previsibilidade da épica, de seu mundo homogeneizado e fechado.
A obra épica funciona, a rigor, do modo como escreve o filósofo Frederic Nietzsche, acima do bem e do mal, porque Aquiles mata para vingar a morte do amigo Pátroclo, porém a vingança é inerente ao sujeito. Em seu Curso de Estética, Hegel (1997, p. 452) salienta que “o sentimento de honra, o respeito, a vergonha ante o mais forte que não quer usar de violência inspira um caráter heróico [...] e o combate funciona naturalmente”. Em contrapartida, o herói do romance torna-se humanizado e individualizado. Ele possui uma série de sentimentos e comportamentos que permitem a mutação de plano para redondo respectivamente, o que não ocorre no herói da epopeia.
Um ponto que difere um e outro é apontar o que Hegel define como “estado geral do mundo épico”; as ideias hegelianas servem para explicar o livre arbítrio dos poemas homéricos que se oporia aos personagens de intenções épicas de Guimarães Rosa. Conforme Hegel, tal liberdade existe na Ilíada em virtude de que no mundo de cultura fechada não há lei e quando um personagem é tido como rei não se trata de superioridade entre ele e seus servidores ou seguidores como é o caso de Agamêmnon, narrado como o rei poderoso que submete os outros príncipes ao seu cetro, todavia não se refere à superioridade do rei Agamêmnon e nem tampouco à inferioridade dos que estão apontados por ele, conforme se lê no “Canto I” da Ilíada. De modo divergente ocorre com o herói do romance moderno e contemporâneo. O protagonista deixa de ser o guerreiro de aventuras e conquistas, com valores nobres e passa a ser trivial e corriqueiro e cheio de defeitos. O narrador delineia-o para que suas ações girem em torno de situações insignificantes, tais como conflitos sentimentais, sociais e econômicos.
Por conseguinte, a personagem de ficção no mundo moderno não é estruturada como modelo arquetípico de perfeição e sua interioridade se dissocia da aventura. Comumente a essas argumentações, elucidam-se os conflitos do herói da epopeia antiga, os quais divergem do romance. Enquanto aquele se volta para o exterior e para a coletividade, o segundo centra-se no conflito interior e na individualidade, no drama do personagem conforme será exemplificado paulatinamente com dois personagens da narrativa roseana em contraposição e similaridade à narrativa homérica. Tais discrepâncias entre os heróis das epopeias antigas e modernas permitiram a Hegel asseverar que “o romance é a epopeia de um mundo sem deuses”. Ou como escreveu Lukács (2003, p. 89): “o romance é a epopeia do mundo abandonado por deus; a psicologia do herói romanesco é a demoníaca”.
Para Lukács (2003) o herói da epopeia pode ser entendido como um indivíduo capaz de representar o destino de uma comunidade, o que não ocorre no romance contemporâneo. Entretanto, pode-se asseverar que se levarmos em consideração a atitude do personagem Medeiro Vaz (chefe dos medeiros-vazes, no sertão mineiro) de Grande sertão: veredas, teríamos um exemplo de convergência com o herói épico. Essa comparação é louvável porque Medeiro Vaz consegue abrir mão de seus interesses individuais, despoja-se de suas terras, casa, gado e outros bens e se atira no sertão adentro em busca de justiça ao seu grupo. Medeiro Vaz apresenta assaz personificação do herói do mundo helênico porque representa o destino coletivo.
Em contrapartida a Medeiro Vaz e ao herói da epopeia antiga, no mesmo romance Riobaldo age individualmente e seu conflito é consigo mesmo, pois, a sua angústia é existencial. Por excelência, tal herói representa um conflito do homem ocidental, como assinalou o professor e crítico Donaldo Schüller (apud COUTINHO, 1983, p. 364): “os conflitos de Riobaldo são os conflitos do homem ocidental na primeira metade do século XX”. Teoricamente, pensando no herói romanesco, entende-se que Riobaldo é subjetivo e essa subjetividade não é abandonada em prol de uma comunidade ou de um grupo. Ele é o exemplo forte do herói problemático das ideias lukacsianas, pois em seu discurso narrativo, procura enfocar sua subjetividade, ao passo que Medeiro Vaz age em favor do outro e desfaz essa individualidade do sujeito.
O personagem Medeiro Vaz assemelha-se bastante com o herói épico, tendo em vista que ele se move de acordo com os interesses coletivos e não individuais. Medeiro Vaz se despoja de sua individualidade em favor do grupo medeiro-vazes que após a sua morte passa a ser conduzido por Riobaldo logo nas primeiras partes do romance roseano. Vaz demonstra o arquétipo do herói épico defendido por Lukács, em discrepância ao personagem do romance moderno. Para o jovem teórico, o herói da epopeia não é, a rigor, um indivíduo, uma vez que “desde sempre considerou-se traço essencial da epopeia que seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade” (LUKÁCS, 2003, p. 67). Tomando tal tese e opondo-se a antitese do herói problemático e individual do romance, implica dizer que Medeiro Vaz na perspectiva do narrador é o homem herói, “O Rei dos Gerais”. A rigor, trata-se de um personagem que se junta aos sertanejos, aos jagunços em busca de honra e justiça. Sua morte encenada traduz a força semelhante a do herói Aquiles, de Ilíada. Medeiro Vaz assume esse papel de luta até o fim:
 
 
 
Medeiro Vaz – o rei dos gerais –; como era que um daquele podia acabar? Debruçando por debaixo dos couros, podia-se ver o fim que a alma obtém do corpo. E Medeiro Vaz, se governando mesmo no remar a agonia, travou com esforço o ronco que puxava gosma de sua goela, e gaguejou: – “Quem vai ficar em meu lugar? Quem capitaneia?...” Ele quis levantar a mão... As veias da mão... Mas não pôde. A morte pôde mais. Foi dormir em rede branca. Deu a venta (ROSA, 1979, p.63, sem grifos no original).
 
 
 
Conforme se nota no discurso heróico do narrador sobre Medeiro Vaz, compreende-se que tal personagem revela a coragem do guerreiro que se preocupa com a defesa ao se questionar quem será seu sucessor na batalha do sertão como ocorre na morte de Pátroclo, vingada por Aquiles que assassinou Heitor.
O epos na perspectiva de Adorno (2003) canta o diferente porque os modos do canto estão além do possível e a divergência marcante é o fato de a epopeia ligar-se a aristocracia e o romance à burguesia. No romance há uma hierarquia de valores burgueses e o histórico, ao passo que na epopeia do mundo helênico tal hierarquia não se aplica. Logo, a epopeia desaparece para dar lugar ao romance. A despeito disso, Letizia Zini Antunes, comentando Lukács, salienta que a impossibilidade do epos no mundo moderno ocorre porque “a epopeia antiga é o produto da unidade orgânica entre a vida pública e a vida privada”. De tal modo, é essa unidade orgânica que, segundo ela, caracterizou o surgimento do romance e, por assim dizer, esse foi marcado desde seu início pela contradição que advém do fato de esse gênero ser assinalado como uma epopeia da sociedade prosaica. Para a comentadora, o romance organiza-se de forma racional e ele
 
 
 
[...] não apresenta as condições materiais para a criação da épica plena, por ser uma sociedade baseada no antagonismo econômico das classes. Nesse contexto, cada indivíduo que age não representa a totalidade social à qual pertence, mas tão somente uma das classes antagônicas e, muitas vezes, apenas seus próprios interesses, que tenta impor contra os outros indivíduos da sua classe, estando com eles numa relação de concorrência (ANTUNES, 1988, p, 197).
 
 
 
Há que se esclarecer ainda duas discrepâncias entre o romance e a epopeia antiga. A epopeia é a memória do povo e a memória é a força motriz dela, enquanto que o romance não se ocupa do processo mnemônico da epopeia. Neste sentido, Invenção do mar não funciona como epos porque o poeta canta no discurso de revisitação, da lembrança, utilizando-se de analepses com a história de D. Dinis (o Diônisos), rei de Portugal no século XVIII, mas ainda assim poderia ser um romance com recurso dialógico como faz José Saramago em Memorial do convento, quiçá Invenção do mar adequasse bem ao gênero de romance histórico em tom épico no que tange a tal revisitação. Na verdade, tal obra tem suas marcas épico-líricas e adensa como uma obra que canta as raças humanas e as almas nordestinas. Para Jamesson Buarque de Sousa, Gerardo Mello Mourão foi o “nosso único poeta, não só no Brasil, mas no Ocidente e quiçá no mundo, que tornou possível uma epopeia no mundo contemporâneo” [3].  Gerardo Mello Mourão intercala a lenda à história para formar o mito realizar um gênero híbrido em Invenção do mar. Apresenta uma familiaridade com o discurso épico e o poeta demonstra que graças às navegações portuguesas plantou-se no Brasil a revolta dos guararás. Invenção do mar possui uma unidade de ação nacional em matéria de revisitação e intertextualidades. Mourão utiliza-se do recurso de reescrita da épica camoniana (embora diferente na forma poemática) para a criação de seu poema com intenções épicas, mas com cenas de nacionalidade brasileira. A obra épica de Mourão, escrita com uma finíssima dicção do epos, tem seu potencial ao mesclar o entrelaçamento entre a obra brasílica e lusíada. Há uma beleza encantadora na descrição das caravelas marítimas de onde o poeta introduz a história brasileira, aliada a história dos portugueses e navegantes:
 
 
 
Pelas várzeas a flor do trigo a flor
do linho a flor do decassílabo
de teu corpo ondulando entre os pinhais.
Entre a cintura e as ancas e o regaço
em teu passo de pássara inventavas
a graça nupcial das caravelas.
(MOURÃO, 1997, p.27).
 
 
 
A memória é a musa da epopeia, mas é também memória do poeta lírico. Em Mourão nota-se a memória épico-lírica na revisitação de histórias dos navegantes e invenção do Brasil, ao explicitar os Bandeirantes e outros episódios que se juntam à recordação, como uma genealogia, o princípio de tudo, formando o passado narrativo:
 
 
 
Os bandeirantes ensinaram tudo
nominaram os rios e as montanhas
e nas janelas velhas das casas velhas
lambida pelo Rio das Velhas - Carlos,
com seus velhos olhos de Sabará - as velhas
olham no chão de pedra
de seus rastros a memória
do princípio das coisas.
(MOURÃO, 1997, p.262).
 
 
Sobre esse poema de dicção do epos, vale apontar o pensamento do respeitável crítico Wilson Martins (1998):
 
 
[...] um poeta como Gerardo Mello Mourão está sendo muito boicotado com acusações vagas de [...] ter sido um espião fascista! Mesmo que essas acusações fossem verdadeiras, elas não teriam a menor importância para a avaliação de sua obra. Gerardo, em Invenção do Mar, teve a coragem de reescrever os Lusíadas na perspectiva brasileira. O resultado é excelente[4].
 
 
No que tange a mesma discussão do herói subjetivo da épica em contraposição ao herói do romance, aquele incapaz de abandonar sua individualidade em prol da coletividade, menciona-se alguns excertos do poema “Os cavalos de Aquiles”, de Konstantinos Kaváfis:
 
 
OS CAVALOS DE AQUILES[5]
 
Ao verem Pátroclo morrer tão jovem,
em todo o seu vigor e bravura sem par,
os cavalos de Aquiles puseram-se a chorar.
A imortal natureza deles se insurgia
contra o feito de morte a que assistia.
Sacudiam as cabeças, as longas crinas agitavam,
e, pisoteando o chão com os cascos, pranteavam
Pátroclo, a quem ali percebiam inerme, aniquilado -
cadáver ora desprezível - o espírito evolado -
indefeso - sem sopro de vivente -
exilado, da vida, no grande Nada novamente.

O pranto dos seus cavalos imortais
fez pena a Zeus. "No casamento de Peleu",
disse, "irrefletido foi o gesto meu;
inditosos cavalos, melhor fora, creio,
não vos ter dado. Que faríeis lá no meio
da mísera humanidade que é joguete da Sorte?
Vós, a quem velhice não ronda nem espreita morte,
infortúnios fugazes padeceis. Às suas
dores os homens vos prendem". - Mas as lágrimas suas
pelo eterno, sem remissão jamais,
infortúnio da morte vertiam os dois nobres animais.
 
 
No que refere ao poema acima e arregimentando com o pensamento de Lukács que retoma Hegel, assevera-se que os heróis gregos funcionam não como indivíduos porque, como se nota, na primeira estrofe, há uma preocupação com o objeto, cuja essencialidade não se volta para o individualismo, mas para um grupo, uma comunidade. Na segunda estrofe o poeta descortina um mundo de dicção do epos que oscila entre a consciência de mortalidade humana e a imortalidade dos deuses numa aceitação do destino, aliás, um “infortúnio da morte”, sem remissão porque no mundo épico não há a necessidade de perdão e o sujeito está inerente à condição imposta pelo poeta para que se cumpra o seu destino.
Em Kaváfis, há uma junção do herói épico e do indivíduo moderno, cuja cena do epos homérico se passa no poema por meio do recurso intertextual, aflorando a memória do vivido e a memória individual do poeta, uma vez que o poeta lírico também possui uma memória coletiva, ao reler outros textos, conforme explicita o crítico Paulo Henriques Britto (2000), no ensaio intitulado “Poesia e memória”.
Infere-se que a epopeia da antiguidade não mais existiria, pois, atualmente, falta originalidade em romances e poemas em estilo épico. Esta originalidade não é vista do ângulo negativo, mas no sentido de que uma epopeia como Ilíada ou como Divina Comédia de Dante Alighieri, em virtude da totalidade promovida pelo epos, jamais seria possível em nossos dias. Compreendeu-se como totalidade de épica, uma obra que sozinha consiga abarcar uma diversidade de assuntos: política, religião, sociologia, literatura, medicina, entre outros. Ao contrário de outras obras de intenções épicas que não assim procedem, quando muito, algumas são possíveis em seu conjunto. Dada a vertente do universo helênico fechado, no qual aedo e ouvintes da epopeia desenrolam as narrativas gregas, conclui-se que não haverá possibilidade do epos na contemporaneidade. Do ponto de vista de Ana Mafalda Leite (1995), notou-se o mesmo caminho em virtude de o epos ser a recitação da epopeia e das civilizações antigas. Arregimentando com as ideias adornianas e benjaminianas, constatou-se que uma das impossibilidades de realização do epos pela epopeia é a sua peculiar ingenuidade. Benjamin (1980) traça um dos caminhos para compreender que a relação de ingenuidade desse gênero não se realizaria hoje porque o narrador do romance não garantiria a reprodução que a memória épica é capaz de promover, uma vez que a memória é a musa da epopeia e o conhecimento a força motriz do romance. Por excelência, contempla-se o conflito interior do indivíduo no gênero do romance, enquanto que na epopeia não há indivíduos em prol de uma subjetividade, mas de uma comunidade, assinalou Lukács em A teoria do romance.
 
 
Referências bibliográficas
 
 
ADORNO, Theodor. “Sobre a ingenuidade épica”. In: _____. Notas de literatura I. Trad. Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2003, pp. 47-54.
 
ANTUNES, Letízia Zini. Teoria da narrativa: o romance como epopeia burguesa. In: _____ (org.). Estudos de literatura e lingüística. São Paulo: Arte & Ciência, 1998, pp.181-220.
 
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. 7. ed. Trad. Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1987.
 
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética. 5. ed. São Paulo, UNESP/Hicitec, 2002, p. 397-428.
 
BENJAMIN, Walter. et alli. O narrador. In: Textos escolhidos. Trad. José Lino Grünnewald et alli. São Paulo: Abril Cultural, 1980 (Os pensadores), p. 57-74.
 
BRITTO, Paulo Henriques Poesia e memória. In: _____ Célia Pedrosa (Org.). Mais poesia hoje. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2000 V. 1, p. 124 -131.
 
HEGEL, George. Curso de estética: o sistema das artes. Trad. Álvaro Ribeiro. São Paulo: Matins Fontes, 1997.
 
HOMERO. Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. 6.ed. São Paulo: Ediouro, 2005.
 
KAVÁFIS, Konstantinos. Poesia moderna da Grécia. Trad. José Paulo Paes. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
 
LEITE, Ana, Mafalda. Epos e épica. In: _____ A modalização épica nas literaturas africanas. Lisboa: Vega, 1995, p. 13-37.
 
LUKÁCS, G. A teoria do romance. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas cidades, 2000.
 
MOURÃO, Gerardo, Mello. Invenção do mar. Rio de Janeiro: Record, 1997.
 
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. 13.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
 
SCHÜLLER, Donaldo. Grande sertão: veredas – Estudos. In: ______ COUTINHO, E. (org.) Guimarães Rosa. Rio/Brasília: Civilização Brasileira/INL, 1983, p. 360-377.
 
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NOTA: Texto produzido por Rosidelma Fraga como exercício teórico das aulas de Teoria do poema em estilo épico, ministradas pelo Prof. Dr. Jamesson Buarque de Souza, no Programa de Pós-Graduação em Letras e Linguística, na Universidade Federal de Goiás.


[1] Trecho da Carta a E. S. e a X. K, apud Wilson Martins. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/gmm01.html>. Acesso em: 07 de maio de 2010. (Vide trechos das cartas violadas em Invenção do mar, 1997, p.14).
 
[2] Idem.
[3] Cf Jamesson Buarque, em nota intitulada “Nênia a Gerardo e um convite”. Disponível em: < http://www.revista.agulha.nom.br/gerardomellomourao.html>. Acesso em: 07 de maio de 2010.
[4] Cf Wilson Martins em entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, 30.05.1998. Disponível em: http://www.revista.agulha.nom.br/castel16.html. Acesso em: 04 de abr.2010.
[5]Tradução de José Paulo Paes em “Poemas”, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, s/d.