Já percebeu o eleitor/a o quanto é difícil tomar a decisão de, na última hora, votar num candidato e não em outro. O voto, que é secreto e intransferível, possui algo de confissão perante aquele que nos ouve e não pode, por obrigação do ofício, transmiti-lo a outrem. Só que no voto estamos perante a urna eletrônica, separado dos mesários por uma espécie de biombo ou anteparo, como a sinalizar um ritual selado contra a invasão de nossos pensamentos inconfessáveis, íntimos, e não diante de um padre ou pastor ou seja lá o que for aquele que nos ouve em segredo e em surdina. Dificílima, pois, a ação de votar, porquanto o mais das vezes ela deixa atrás de si muitas interrogações, dúvidas e incertezas, quem sabe, até sentimento de culpa, traição ou mesmo pecado. 
                             Após havermos assistido a alguns debates, no meu caso, a dois debates pela TV, persiste, no nosso espírito, um vago sentimento de frustração ante o desconhecido e o imponderável criados pela nossa expectativa vacilante entre a escolha a ser feita e que não tem volta, uma vez que a tenhamos concretizado ao apertar os botões correspondentes a dois dígitos e o ato quase simultâneo, o de  apertar o botão de confirmação do voto. Consummatum est!
Observe o leitor ou leitora que não estou até então falando da opção pelo voto nulo, que tem outros ingredientes no julgamento do eleitor ou eleitora de candidatos.
                            O ato de votar faz vir à tona todo esse mal-estar produzido por anos  e anos e anos de decepções individuais e coletivas acumuladas e que, por vezes, chegam à exaustão.
Votar em alguém equivale a um ato de discernimento ou a um pulo no escuro e, no exemplo da política brasileira, se torna ainda mais complicado porquanto há uma distância bem grande entre a apresentação de planos de governo e a sua concretização durante a performanace administrativa do candidato eleito, sobretudo se este se está elegendo pela primeira vez e para aquele mandato específico.
                           A corrida a um posto eletivo pressupõe um conjunto de componentes oriundos de diversos meios da realidade social que fazem com que a “sociedade de espetáculos” transforme aquela realidade empírica num simulacro e é partir deste que a polifonia das massas assume suas identidades ou suas aversões no que tange a escolhas de candidatos.Sempre me pareceu que anular o voto nos deixa mais vulneráveis  ao desapontamento, como a querer significar uma ausência ou amolecimento da vontade própria, ou o despertar do sentimento de anarquia ou de  desobediência civil , conforme propôs Henry David Thoreau (1817-1862) na obra Civil  disoobedience (1849)com que o cidadão faz valer sua vontade própria.

                         Por isso, no íntimo do meu ser não nutro nenhuma simpatia pela anulação do voto, não obstante não nego que  já tenha passado pela minha cabeça algumas vezes ou ocasiões de ser favorável à anulação do voto como protesto e sinal de ceticismo pela política que se vê em nosso país. 
                        É óbvio que muitas vezes nos rebelamos diante da falta de opção pelos candidatos e aí nos vem aquele desejo incoercível já mencionado de sermos anárquicos, ou seja, de não sentirmos nenhuma disposição de votar, transformando essa má vontade num libelo contra o lado sujo e enlameado desse circo de horrores morais em que têm chafurdado as piores espécies de políticos. São essas visões que nos assaltam até ao último instante quando daremos o passo final da nossa escolha. 
                      O eleitor menos qualificado culturalmente constitui uma presa mais fácil da mistificação embutida nesses ingredientes da “sociedade de espetáculos”. Creio que hoje a mídia mais poderosa de que dispõe a sociedade, porque atinge escala planetária, seja  a televisão, mídia na qual se incrustam outras mídias de forma virtual, associadas à publicidade e às várias formas de produzir subliminarmente no espírito dos telespectadores “realidades “aparentemente” convincentes  que levam os incautos ou os ingênuos a pensamentos de natureza manipulatória, tal a força da imagem, do som,  da palavra e dos enquadramentos técnicos escamoteadores da verdade, e, o que é pior, dirigidos à variedade de segmentos sócio-econômico-culturais. 
                      A indiferenciação da cor partidária, aliada às chamadas adesões múltiplas de siglas de partidos -  verdadeiros sacos de gatos -, concorre sobremaneira para aquele ato mistificatório, dificultando as opções individuais de exercerem a genuína consciência crítico-reflexiva e de manifestarem a autonomia de pensar por vontade própria. Tudo isso acontece com a cumplicidade do faz de conta do establishment que, mal ou bem, se mantém e dá continuidade e relativa solidez às instituições criadas pelo Estado.Estimular, por conseguinte, o voto obrigatório e ao mesmo tempo glamourizando-o de uma aura de ética e de dignidade da obrigação cívica, robustece a perpetuação das estruturas vigentes.
                    É preciso revestir os simulacros de uma ritualística com reverberações que vão do culto à obediência á valoração da ação praticada pelo instrumento do voto. O voto obrigatório não deixa de ser um ato autoritário, ao impedir o indivíduo de exercer sua vontade de praticar ou não uma ação. Cumpre, assim, incutir nos espíritos essas práticas que, pela reprodução das ações ritualísticas, se transformam em atitudes , agora, não de atos compulsórios, mas de ações patrióticas, dignas de serem imitadas por todos, até pelos que extrapolaram os limites de idade estabelecida por lei.
                   Aí residem as poderosas forças das chamadas democracias, que fazem a festa e as alegrias dos políticos brasileiros. Ao eleitor rebelde só resta abrir um certo livro de José Saramgo e contentar-se, agora, com a força e o sortilégio do imaginário.