O dia em que choveu poesia

Raymundo Netto

Que os leitores não estranhem, mas teve um dia em que choveu mesmo poesia por aqui. Não, talvez eu também nem desse crédito a tal absurdo, se não tivesse visto com meus próprios olhos.

Foi assim: Túlio Monteiro, prosador e boa gente, ligou-me dizendo estar precisando de 100 poesias para fazer “chovê-las” no centro da cidade. Calei ao telefone e pensei: escrever pode não fazer bem à saúde mental! Eu estava enganado... Explicou-me que em 1982, Adriano Espínola, escritor cearense, lançou, literalmente, do alto de um edifício de vinte andares do entorno da praça do Ferreira, o seu livro de poemas O Lote Clandestino. Foi a primeira Chuva de Poesias no Ceará.

No ano seguinte, outros autores, em meio ao processo de anistia e redemocratização do país, jogaram, dos altos dos prédios da mesma praça, 80 mil panfletos — em todos, se lia a divisa: “Poetas pelas DIRETAS” — com poesias de diversos autores da época. Daí, passados vinte e cinco anos, como parte da Feira do Sebo, tiveram a bela idéia de resgatar a história dessas chuvas ainda pouco conhecidas pela cidade que cresce (incha) fria e desmemoriada.

Empolgado com a idéia, pedi versos aos amigos. Destes, poetas já conhecidos ou nunca antes publicados.

No dia do evento, para variar, cheguei atrasado. Vinha pela sombra do corredor ventaneado da Barão do Rio Branco, quando ouvi um barulho... Levantei a vista e assisti, deslumbrado, à Chuva de Poesia. Os cem mil panfletos, dispersos aleatoriamente no ar, bruxuleavam como papel laminado. Os pequenos quadrinhos envermelhecidos pela pátina de Sol que começara a se pôr, gritavam num rompante poético e passamos a ouvir todas aquelas vozes rasgando o silêncio da tarde a lavrar o afresco do céu como pássaros libertos e brilhantes. Alguns, mesmo antes de descer ao solo, transformavam-se em borboletas ou emprestavam as asas dos pombos que marchetam a fachada do cine São Luiz. Enquanto uns floresceram dependurados às janelas, de outros brotavam nuvens, estrelas ou prantos revelados numa chuva "poetorrencial".

As pessoas paravam na rua, juntavam-se, aproximavam-se às portas das lojas, sorriam uma para as outras, trocavam impressões... Entre elas, eu que chovia, imaginava ali, naquela papelança, um pouco de mim e de alguns amigos. Via-lhes o rosto; sentia-lhes a alma a invadir o terreno monótono da incredulidade.

Um dos panfletos deslizou ligeiro numa sapataria. Entrei e peguei-o: Martinho Rodrigues? Esse eu não conheço! Li, depois entreguei a um curioso vendedor. Pus-me a catar poesias esparramadas pelas calçadas. Mas não era apenas eu quem as colhia. Vi jovens, taxistas, camelôs, senhoras, engraxates e lojistas devorando-as ainda vivas.

Chegando à feira da praça, minha alegria foi ainda maior, pois encontrei muitos dos meus amigos que “choviam”. Estavam felizes, mostravam seus poemas, guardavam ou trocavam outros. Era como se a árida incompreensão das coisas da vida, onde a poesia e a beleza cada vez têm menos espaço, estivesse sendo lavada por dentro em seus corações.

Fragmentos de amores, alegrias, tristezas, dúvidas, desilusões e esperanças: sentimentos humanos!, ainda transbordavam. Porém, até então, não vira nenhum panfleto com meu poema. Foi quando, depois de procurar em pilhas e pilhas de papel, vi um rapaz colocar alguns numa lixeira. Disse-lhe: “Olhe, se eu estiver aí dentro vou ficar chateado com você”. Eu estava entre eles, sim, mas, ao contrário, fiquei feliz de ver, mesmo que meio amassado e um pouco sujo, um exemplar que, antes de guardar na memória, o fiz na velha mochila.

A noite chegou coroada à lua cheia. Quase não se via mais poesias a pratear as calçadas, os toldos ou marquises. Encantaram-se!

No caminho, decidi escrever esse registro, cronicamente correto, para que, daqui a alguns anos (uns cem talvez), alguém possa degustar as saudades desse tempo e lembrar, afinal, acredito: quem consegue lembrar, guarda o mundo dentro de si!

Os 100 autores/poesias que choveram na praça do Ferreira (Fortaleza, Ceará) no dia 26 de outubro de 2007 

Túlio Monteiro (Dos Silêncios e Respostas que Não Convencem), Raymundo Netto (Fortaleza?), Lira Neto (Semente de Tamarindo), Pedro Salgueiro (Peso do Morto), Carlos Nóbrega (Três Fortalezas), Henrique Beltrão (Vermelho), Amanda Orson (As Crias da Noite), Rejane Costa Barros (Cantiga de Uma Saudade), Carlos Gildemar Pontes (Cavalos Marinhos), Ítalo Rovere (D...), Ana Cristina Souto (Domador de Dores), Carmen Córdoba (Poema de Uma Falsa Poetisa), Aíla Sampaio (A Cidade), Pablo Robles (Era Uma Vez a Natureza), Aline Carlos (Laços de Lembranças), Urik Paiva (Instante-Quase), Solange Benevides (Nas Contas dos Mistérios), Malena Monteiro (Vocábulos), Calé Alencar (Ventre), Georgia Cruz (Universo Sensitivo ou Órbitas Ornadas Tuas), Lucineide Souto (Uma Outra Vida), Ricardo Kelmer (Sonhos Urbanos), Jorge Maia (Por Aquela Porta), Sonha Malaquias (Vida e Poesia), Edilmo Bezerra (Corpos Ardentes - por si só soa e ecoa), Gisneide Ervedosa (Amor de Poesia), Ivaldo Ribeiro Filho (Ao Acaso), Sérgio Severo (Canto de Amor à Fortaleza), Zinah Alexandrino (Catarse), Magali Oliveira (Chuva de Prata), Rebeca Sales Viana (Delicadeza), Nelson Rocha (Filho da Pátria), Paola Benevides (Mônada), Zenaide Marçal (Pensa em Mim), Chico Miranda (Pelo Amor de Deus), Fernanda Benevides (País das Maravilhas), José Netto (O Livro da Chuva), Meire Viana (Menina-Loba), Ayla Andrade (Canção de Ninar), Rafael Martins (Sobressalto), Nilto Maciel (Lâmpadas de Azeite), Roberto Pontes (Poema para Foto Antiga), Batista de Lima (O Pregador de Botões), Martinho Rodrigues (Uma Sonata), Mirella Adriano (sem título), Veridenia D. Passos (Canção do Exílio), Olganira Mota (A Insônia que Você me Causa), Sabina Colares (Luminância do Amor), Fládia Carcos (Quando Minha Viola Quebrar), E.B. Sotero (Não Tem Sumiço), Tátio Bezerra (Venha, Pois Te Espero), Gervana Gurgel (Criação), Alan Mendonça (As Penas), Cláudio Feitosa Dantas (D. Quixote), Chico Vieira (Para El Bojador Caminante), Lya Carvalho Jardim (O Homem que Calculava), Araceli Sobreira Benevides (Paisagens de meus Sonhos), Djaila Cordeiro (Ao Acaso), Marcos Abreu (Eterno Amor), Dimas Macedo (Poema), Barros Pinho (Alguma Herança), Carlos Augusto Viana (O Percurso das Cinzas), Clauder Arcanjo (Sombras de Mim), Diogo Fontenele (Madrigal de Revisitação à Fortaleza de Nossa Senhora d’Assunção), Francisco Carvalho (Circe), Cláudio Portella (Poême), Hamilton Monteiro (Imortalidade), Jorge Tufic (Manuel de Barros), Linhares Filho (Momento), Leontino Filho (Silêncio Breve), Micinete Mulher (Chão da Fumaça, Chão do Mundo), Demétrios Galvão (sem título), Eduardo Cardoso (Desaguar), Eli Castro (Na Serra), Fabiana Guimarães Rocha (Fluídas Águas), Fernanda Meireles (Boá), Frederico Régis (A Nua Sauna), Nilze Costa e Silva (Frida Kahlo), Manoel César (RQ), Bento Filho (Histórias Salinizadas), Expedito Maurício (As noites de Iracema), Vírgilio Maia (Desde uma Marinha de Socorro Torquato), Pedro Henrique Saraiva Leão (sem título), Fernando Néri (Êxtase), Marina Fernandes (Sem título), Adriano Espínola (N[ave] Cidade), Henrique Araújo (Dois menos um), Henrique Dídimo (Atalaia), Marina Araújo (DespejoDesejoDespejoPelejaDespejo), Mirella Adriano (Luna Azul), Reinaldo Pimenta (Olhos de Fanal), Manoel Carlos de Alencar (Sol Sobre a Neblina), Mardônio França (Poema da Maldade da Saudade), Roberto Barros (Sonho Blue), Sara Leôncio (Carrossel), Ylo Barroso (Canção de Encontro), Soares Feitosa (Adolecíamos), Luciano Maia (Perfil de Mariana), Suely Andrade (Cotidiano), Sânzio de Azevedo (haikais: Nordeste e Nordeste 2) e Mário Gomes (Gritos do espírito)