O CRIADOR DE MUNDOS, RESENHA

Miguel Carqueija

 

Resenha de “O criador de mundos” de Henry Slessar. Sem indicação de título original. Editora Outubro Ltda.,São Paulo, 1963. Tradução de Walter Forster Ramos. Capa de Sérgio Lima. Coleção Super Bôlso 401, Série Imaginação. No mesmo volume “A praga azul” por Robert Silverberg, e “O homem anônimo” sem indicação de autoria (mas fui informado que é também de Henry Slessar — muito displicente essa edição de bolso!)

 

 

            Henry Slessar era um autor popular de contos policiais e criminais, bastante assíduo nas revistas do gênero que, nas décadas de 50 e 60, circulavam abundantemente nas bancas do país. Esta novela de ficção científica, porém, entre nós publicada pela mesma época, surpreende pela criatividade e até pela mensagem, apesar de ser uma edição obscura.  Eu a adquiri em 2007 dentre as obras que o Dr. Rubi Felisbino Medeiros, de Porto Alegre, colecionador de FC e editor, por muitos anos, do fanzine “Notícias do Fim do Nada”, vinha vendendo pelo correio.

            A história fala de um homem estranho e único, Smith, conhecido apenas como tal, embora fosse originalmente Ronald ou Robert Smith (o protagonista-narrador já não sabia ao certo), e Luke, o homem mais comum, embora forte personalidade, que com ele manteve durante anos uma singular relação de amor e ódio, e que tudo narra retrospectivamente. Uma novela fascinante.

            Luke narra em primeira pessoa. Smith é a lenda, é mais novo poucos anos e já, em garoto, se destacava como gênio inventivo. Mas desde o princípio os sinais de megalomania nele se manifestam. Quando Luke tem a oportunidade de folhear a Bíblia do seu colega de escola, tem uma baita surpresa. O exemplar estava “corrigido” a lápis e começava assim:

            “No início SMITH criou o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; (...) E o espírito de Smith movia-se sobre a face das águas. E Smith disse: — Haja luz. E houve luz...”

            O próprio Luke admite: “ateu como eu professava ser, a visão daquela página alterada deixou-me gelado e temeroso”.

            Nos anos seguintes, como amigo, empregado e até como inimigo declarado, Luke lidará muitas vezes com Smith tornado poderoso no mundo e, sempre movido pela esquizofrenia de se julgar uma divindade, empenhado em criar um novo mundo, no qual ele fosse um “deus”. Luke custará a avaliar completamente o tamanho da loucura daquele indivíduo que, inclusive, lhe rouba a mulher amada. Mas o mundo novo surge no espaço; o Mundo de Smith, e do qual Smith é o ditador absoluto. É marcante a cena em que, surgindo diante de Luke em forma de holograma, Smith, como uma serpente diabólica tentando Adão e Eva, lhe oferece um novo suposto Paraíso...

            “Permita-me que lhe diga como é meu mundo. É um mundo de perfeição. Um mundo de cidades de alabastro e de harmonia humana. Um mundo de beleza.”

            Em seguida, mostrando uma fruta:

            “É uma maçã, uma maçã que acaba de ser retirada de um novo Jardim do Paraíso, com 12 polegadas de diâmetro. E não é uma das onstruosas frutas terrenas, alimentadas quimicamente, Luke. É uma maçã suculenta, tenra, típica de nossos produtos agrícolas, símbolo da diferença entre o velho mundo e o novo. Nossas grama e as nossas árvores são as ais verdes que já se viram, Luke. Nossas águas são límpidas como espelhos e nosso clima é o mais balsâmico que já se conheceu. Há pássaros da mais rara beleza e vida selvagem de exótica perfeição. Nossas cidades são maravilhosas e nossa cultura algo já próspero e vital. É o Paraíso, Luke.”

            Mas Luke, apavorado com a blasfêmia de Smith, e já sentindo-se deixar de ser ateu diante do absurdo de um homem querer ser um deus, recusa ir para o mundo artificial que a mega-empresa montada pelo outro criou no espaço cósmico atraindo para lá milhões de seres humanos. Quando finalmente ele vai, descobre que o anunciado paraíso ocultava um inferno, uma monstruosa distopia.

            Este o argumento básico desta que é uma das mais interessantes novelas de ficção científica de fundo religioso, encerrando significativa mensagem.

 

            No mesmo volume temos “A praga azul” do conhecido Robert Silverberg. Um conto um tanto banal que volta ao clichê dos invasores vindos de outro planeta do Sistema Solar – no caso, Vênus. Não achei muito interessante, caindo inclusive no cacoete de fazer o vilão explicar direitinho seus planos aos heróis, quando estes estão aprisionados. De fato o venusino entrega tudo de graça:

            “Basicamente a situação é a seguinte: Vênus está com excesso de população, e precisamos expandir nossa área vital. A Terra parece ser um mundo ideal para a execução desse objetivo — e, por isso, se planejamos colonizá-la, devemos primeiro dispor de seus habitantes.”

            Curiosamente, histórias desse tipo costumam ser totalmente superficiais com relação à psicologia (e, de resto, religiosidade) de tais alienígenas, em geral completamente frios, impiedosos e pragmáticos.

            “O homem anônimo” por coincidência foi publicado com anonimato do autor, uma falha editorial. Mas segundo Eduardo Torres, o autor é o mesmo Henry Slessar. É uma história bem diferente, sobre um homem que anda por aí com um “corpo astral” sólido, deixando o corpo básico em qualquer lugar; e os percalços que vai passando.

Esses dois contos podem ser lidos com interesse mas, no fim das contas, o interesse maior está na novela.

 

 

Rio de Janeiro, 16 de outubro de 2015.