O conflito dos contos populares em diferentes tempos e culturas

[Dílson Lages Monteiro]

Os contos populares representam tentativas de entender o mundo. Para Darton (2017:14), o significado social deles está em serem “bons para pensar”. O historiador explica que “os contadores de histórias camponeses não achavam as histórias apenas divertidas, assustadoras, ou funcionais. (...) Reelaboravam-nas à sua maneira, usando-as para compor um quadro da realidade, e mostrar o que esse quadro significava para as pessoas das camadas inferiores da ordem social”.

Vê-se que os contos comunicam características, valores, atitudes e uma maneira de interpretar o universo. É o que se expressa na obra seminal da literatura infantil, o livro Contos de Mamãe Ganso, de 1697, cujos contos foram coligidos em livro, inicialmente, por Charles Perrault. Registra-se que ele recolheu seu material da tradição oral do povo, tendo como principal fonte, provavelmente, a babá de seu filho. A obra reúne histórias narradas nas cabanas dos camponeses, na França do século XVIII. As narrativas foram contadas e recontadas em diferentes versões e culturas ao longo dos últimos séculos, ganhando, inclusive, interpretações à luz da psicanálise, com leituras de Eric Fromm e Bruno Bettelheim.

Ambas as tentativas de explicar o âmago dos contos populares, centradas em examinar símbolos escondidos, motivos inconscientes e mecanismos psíquicos, apesar do amparo que obtiveram, são questionáveis por vários motivos. Segundo Darton (p. 23), Fromm, por exemplo, vê o significado implícito dessas narrativas no simbolismo –  “mas o símbolo que ele viu  em sua versão do texto, baseavam-se em aspectos que não existiam nas versões conhecidas dos camponeses, nos séculos XVII e XVIII”. É o caso de Chapeuzinho Vermelho. Inexistiam, entre outros elementos, na versão dos campenses, o chapeuzinho vermelho, símbolo da menstruação,  e a garrafa que levava a menina como símbolo da virgindade.

Já na leitura de Bettelheim, figuram também elementos que não vigoram na versão original da tradição oral francesa. De acordo com ele, “’a chave da história e de todas as histórias desse tipo, é a mensagem afirmativa de seu desenlace”.  Assim, “tendo um final feliz os contos populares permitem às crianças enfrentarem seus desejos e medos inconscientes “ (p.25). Darton questiona essa leitura, argumentando que os psicanalistas “não se preocuparam com as transformações do texto – na verdade, nada sabiam a respeito – porque tinham o conto que desejavam. Começa com o sexo na puberdade (o chapeuzinho vermelho que não existe na tradição oral francesa) e termina com o triunfo do ego (a menina resgatada – que, em geral, é devorada nos contos franceses) sobre o id (o lobo, que jamais é morto nas versões tradicionais). Tudo está bem, quando termina bem” (p. 25).

A leitura dos psicanalistas, pois, é horizontalizada, atemporal. Leram os contos como se eles não tivessem história. Desconsideram suas origens e outros significados que tiveram em outros contextos. Contrariam o ponto de vista de Darton (p.26): “Os contos populares são documentos históricos. Surgiram ao longo de muitos séculos e sofreram diferentes transformações, em diferentes tradições culturais. Longe de  expressarem as imutáveis transformações do ser interno do homem, sugerem que as próprias mentalidades mudaram” (p.26).

Para a história cultural, ou história das mentalidades, o homem comum pensa na realidade com coisas como histórias ou cerimônias. A noção de leitura dessa área do saber considera que “aprendemos a classificar as sensações e a entender as coisas pensando dentro de uma estrutura fornecida por nossa cultura” (p.17).  Nesse sentido, conclui Darton: “Ao historiador, portanto, deveria ser possível descobrir a dimensão social do pensamento e extrair a significação de documentos, passando do texto ao contexto e voltando ao primeiro, até abrir caminho através de um universo mental estranho”. É necessário, desse modo, entender como as culturas elaboram maneiras de pensar, a fim de compreender como organizam a realidade em suas mentes e as expressam em seu comportamento.

O arcabouço metodológico da história das mentalidades permite que se compreenda como conflitos presentes na cultura se apresentam em diferentes tempos. Entender isso significa observar nos contos as representações culturais de como viviam os camponeses do princípio da França Moderna: “ Habitavam um mundo de madrastas e órfãos, de labuta inexorável e interminável, e de emoções brutais, tanto aparentes como reprimidas” (p.47). A vida era desagradável, grosseira e curta. Assim, justificar-se-ia a estrutura formal e temática subjacente a contos como “Gato de Botas”, “Pequeno Polegar”, “Cinderela” e “Os desejos ridículos”.

Entre os variados traços culturais da sociedade francesa do século XVIII, capazes de demonstrar que o mundo é duro e perigoso, presentes nos Contos de Mamãe Ganso, por exemplo, podem-se, dessa maneira, destacar:

a)A morte frequente de crianças;

b)A intensa e dramática  luta pelos recursos escassos que opunham pobres e ricos;

c)As madrastas como  figuras importantes nas aldeias;

d)A subnutrição e abandono de crianças pelos pais;

e)Pais trabalhando no campo, enquanto os filhos recolhem madeira, guardam as ovelhas, pegam água, tecem a lã, ou mendigam.

f)Tendência para a astúcia e a intriga;

g)Predomínio do mundo real sobre a fantasia.

 

Os contos populares se constituem, portanto, em  documentos históricos que expressam a mentalidade coletiva de seu contexto de produção. Algumas interpretações psicanalíticas sobre essas narrativas, bastante difundidas, desconsideram esse contexto, negligenciando a dimensão histórica e cultural do texto original. Resultado disso é que, embora a leitura dos contos populares à luz da psicanálise enseje abordagens curiosas, propõe interpretações  atemporais. O exame de histórias como Contos de Mamãe Ganso requer o diálogo entre as condições materiais e afetivas da existência dos personagens, ações e espaços retratados, a fim de se compreender os conflitos e mentalidades que estruturaram o modo de pensar de uma época.

 

Referência:

DARTON, Robert. O grande massacre dos gatos e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro/são Paulo; Paz e Terra, 2017.