(*)Dílson Lages Monteiro A inquietação é condição intrínseca à escritura – a inquietação pela idéia representativa de um modo peculiar de pensar; a inquietação pela forma convertida em fenômeno estético; a inquietação pela redefinição das próprias atribuições da literatura... Na efervescência de tantas excitações, poucas parecem reverter-se tão dilemáticas quanto à busca de objetivo para a produção literária – o prazer? Ou o social? Vítor Gonçalves Neto (Teresina – 1925, Caxias – 1989), em Fogo, leitura obrigatória para o vestibular 2003 da Universidade Federal do Piauí – UFPI, faz valer conclusões da professora Tânia Paccentini acerca do ofício do literato: “O escritor é aquele que não aceita o que está sendo imposto, que denuncia, que participa, revela, tenta influir no processo de transformação de uma sociedade tão injusta, que resiste, que coteja a realidade que o cerca, que sonha com uma sociedade justa, digna, fraterna”. Considerando-se o que se disse a respeito do papel do escritor, três itens convocam a uma análise mais detalhada da missão de Gonçalves Neto no conto – o retrato geográfico, político e social doloroso de Teresina da década de 40 do século passado; a hábil construção do narrador, que não filtra as ações por lentes escuras, mas como elas se moldam na realidade (ou ao menos na realidade da cosmovisão que ele representa) e o tom sensual (os mais ousados diriam sexualização) dado aos incêndios em alguns trechos. Ao ambientar as ações em Teresina da década de 40, Vítor Gonçalves Neto seleciona e organiza os elementos da narrativa em defesa das vítimas dos sinistros, a começar pelo núcleo central do texto. Lucinha, personagem protagonista, que, como os demais habitantes da periferia da cidade, vive sob a égide do medo, da insegurança, do desespero, tem o seu drama existencial dissecado com ternura e comoção. Uma comoção que não se mascara na hipocrisia da piedade católica, porém, na revolta do discurso do narrador e na fidelidade aos registros históricos que se tem conhecimento sobre os referidos episódios. Assim, o autor legitima o que escreveu o crítico Antônio Cândido, citando Lucien Goldmann: “A criação, não obstante, singular e autônoma, decorre de uma certa visão do mundo que é fenômeno coletivo na medida em que foi elaborado por uma classe social, segundo o seu ângulo ideológico próprio”. O narrador, representante na obra, portanto, da grande massa residente em casas cobertas de palha, rompe com a camisa-de-força da opressão e, ao decorrer de toda a obra, vai indicando pistas, que levam aos responsáveis pelos incêndios, a polícia, conforme o texto. Pode-se atingir tal conclusão em trechos como: “Tem medo de que lhe aconteça alguma desgraça nessas ruas escuras, sem meios de transporte e em que a própria polícia amedronta mais que os raros ladrões” (p.16); “Após o estúpido fechamento do jornal do velho Semana (...), depois do desaparecimento misterioso de inúmeros homens anônimos do povo, o que motivara a saída do então Major José Figueiredo Lobo, que comandava o batalhão sediado em Teresina e tanto fizera pelos seus subalternos, somente porque não admitia os desmandos do chefe de polícia” (p.22); “Os guardas que haviam se abalado da formatura, faziam um cordão para impedir a passagem do povo, criminosamente esperando que os bombeiros chegassem” (p.25). Além de deixar clara sua posição em relação à autoria dos crimes, o narrador procura manter-se fiel aos registros históricos já oficializados por cronistas da época e por alguns pesquisadores. É o que se nota em: “Desde três anos consecutivos que a cidade vivia sob o domínio do fogo” (p.13); “Os incêndios eram diários. Ás vezes em 3 ou 4 pontos da cidade numa hora só”.(p.15); “Nem a polícia, nem o exército, nem mesmo os detetives enviados do Sul descobriam a razão daquilo” (p.15);dentre diversas passagens. É o que se percebe também num dos pontos recorrentes no texto, a repressão vigente no período: “Francisco Fora preso, como incendiário, nessa noite. Verdade que ele não tinha coisa alguma com o fogo da Piçarra. Nem mesmo seria tão miserável para cometer tamanho sacrilégio. Estivera lá apenas como repórter do jornal e não sabia que já estava proibido falar-se nesse assunto.” (p.18); “Diziam que ia Chover porque era proibido falar em fogo. Porque amordaçavam as pessoas, prendiam os inocentes, matavam quem se atrevesse a soltar uma palavra de revolta” (p.21) Outro ponto imprescindível para o exato entendimento do compromisso social de Gonçalves Neto é o sensualismo. Mas que associação é cabível entre ele e tom social de Fogo? Valmir Adamor, em Psicanálise da criação literária, diz que, na arte, “o sexo se apresenta sob aspectos vários, ora declarado, ora camuflado. Amores impossíveis, conquistas impossíveis, desejos irrealizáveis – tudo a Arte realiza. E seus autores simbolizam, na poesia, no romance, na pintura e escultura, o que não raro a vida lhes nega”. Na obra em discussão, entretanto, o que se verifica através das imagens sensuais é o emprego delas para enfatizar a força destrutiva dos incêndios. O prazer se vincula, no caso, à satisfação com que o fogo devora as casas, numa analogia cujo propósito maior consiste em mostrar a dimensão do vigor destrutivo dos incêndios como em “As chamas lambiam as palhoças, subiam, desciam, davam estalos de gozo” (p.19) Em Fogo, Vítor Gonçalves Neto credita valor a Sartre, que em detidas notas a respeito de “para quem se escreve”, definiu o escritor como guardião dos valores ideais, porque, de acordo com o filósofo, “escrever é uma certa maneira de desejar a liberdade” . O que move Vítor Gonçalves Neto é o desejo de liberdade – uma cidade nova, em que “o povo sonhava outra vez com transportes, calçamento, esgoto e outras necessidades materiais que a inquietação fizera esquecer” (p.22) (*) Dílson Lages Monteiro é professor e poeta