O cheiro da grama: um instante da memória
Por Cunha e Silva Filho Em: 08/05/2013, às 21H39
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Cunha e Silva Filho
Já me encontrava com Elza, a minha mulher, no interior de um ônibus.Num banco pouco atrás de nós, estava meu filho Alexandre; íamos de volta pra casa. De chofre, ao dobrar a esquina para entrar na Marechal Câmara, pela abertura da janela do veículo, em bela manhã de maio de sol temperado, chegou-me até as narinas um cheiro gostoso de grama verde, circunvizinha daquele espaço de construção onde ficava o chamado Calabouço, o famoso restaurante dos estudantes no tempo da ditadura militar. Estudantes pobres ali tinham um lugar seguro onde podiam almoçar e jantar por um preço simbólico.
Um outro Rio era aquele dos período da ditadura militar a partir de 1964. As imagens jorram para trás no tempo provocadas pelo cheiro repentino que exalou num instante de menos de um minuto, talvez alguns segundos. Olhei, então, para o lado esquerdo da paisagem que dá para os velhos prédios da Avenida Beira-Mar, com aquela calçada que, uma vez, pisei pela primeira vez em direção ao conhecido restaurante. As árvores, em frente dos prédios ainda ali estão, sempre dando sombra, generosa sombra, testemunha de tantas visões, movimentos, vozes e pensamentos diluídos pelo tempo.
Mas, o marco certo no qual ficava o restaurante está vazio das pessoas que naquele ano ali comiam, conversavam sobre política, sobre o futuro. Éramos muito jovens mesmo. A vida, uma incerteza. Os sonhos da juventude fervilhavam. Tinha poucos dias que chegara ao Rio e, ali, no Calabouço, à sua entrada, levava um documento, uns papéis.
Não me lembro para que eram. De repente, juntando-se a mim estavam outros piauienses que chegaram à cidade antes de mim. Um deles, malvadamente, tomou de mim aquele documento, que era para eu entregar a alguém, em algum lugar. O conterrâneo malvado, que havia sido colega meu no Liceu Piauiense, aos risos, se afastou sem me entregar de volta o documento.
Essa foi a pior impressão que tive de um conterrâneo de má índole. Não mais me avistei com ele para lhe cobrar o documento. Só o tempo cuidaria do mau-caráter. Deu péssimo exemplo de falta de solidariedade a um jovem recém-chegado em terra estranha. Não consigo esquecer as ações desonestas (que me perdoe Álvaro Moreyra, poeta, cronista e jornalista nascido em 1888 e falecido em 1964)) que me fazem. De um colega que morou na mesma Casa de Estudante que eu, a CESB, ouvi a seguinte afirmação: “Quando uma porta se fecha, outra se abre.”
Esse colega, o Anastácio Ferreira Morgado, leitor assíduo, na época, de Jiddu Krishinamurti (1895-1986), filósofo, escritor e educador indiano,da mesma forma, por coincidência estudou, no mesmo ano que eu, num curso preparatório a vestibular de medicina, jovem inteligente e muito estudioso, hoje, segundo me informaram, é um pesquisador de renome. O curso preparatório chamava-se “Curso Arquimedes, cujos professores eram jovens estudantes de medicina,” e ficava num dos andares do velho Edifício Santos Vale ( que vi citado numa obra de Álvaro Lins (1912-1970), Missão em Portugal: diário de uma experiência diplomática – I, 1960) numa conhecida rua do Centro, a Senador Dantas. Por mera falta de motivação, larguei o “Curso Arquimedes” no meio do ano.
No Calabouço, encontrei outros jovens, inclusive um piauiense, o Ribamar Garcia, que se tornou advogado trabalhista, escritor de ficção, com pelo menos, uma dezena de obras editadas. Um ano mais jovem do que eu, Garcia também conheci no Calabouço e logo fizemos amizade, amizade que começara pelo nosso interesse mútuo pela língua inglesa (ele estudava na Cultura Inglesa. Passei uns tempos sem ter notícias dele. Depois, por acaso, o reencontrei numa rua do Centro. Já era advogado militante. Retomamos a amizade até hoje.
.No restaurante tive o prazer de conhecer o Ary Medeiro. Ele trabalhava na parte de assistência social do restaurante. Ary se tornou professor da UFRJ, na área de Assistência Social. Aposentou-se, mas ainda tem vínculo docente com a universidade. A amizade continua até hoje.
Do ônibus, avisto agora, apenas uma passarela que dá para o Aeroporto Santos Dumont e, embaixo dela, abriram há tempos uma pista que segue pelo belo Aterro do Flamengo em direção a bairros da Zona Sul, como o Flamengo, Botafogo, Urca, Copacabana etc. O prédio do Calabouço, além do espaço destinado ao restaurante, oferecia, nos fundos, outros serviços, como lavanderia e diferentes lojinhas comerciais.
As gerações mais novas não sabem nada sobre aquele tempo do Calabouço, lugar muito associado aos rumos da política brasileira. Lá se misturavam estudantes apolíticos, estudantes da esquerda, militantes políticos contra a ditadura. O restaurante mereceu até um livro de um colega meu, que foi diretor da CESB, o Dirceu, um baiano amante da oratória e da poesia de Castro Alves, para ele o maior poeta que o país já deu.
Dirceu era emotivo, dinâmico, franco, solidário. Seu livro sobre o restaurante teve por título O canto do Calabouço. Não tive acesso ao livro, infelizmente, Dirceu me deu uma rara demonstração de alegria e felicidade por saber que eu havia sido aprovado, em 1966, para o curso de Letras da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, depois chamada Universidade Federal do Rio de Janeiro.Até hoje, não esqueci o abraço caloroso deste jovem destemido e de temperamento político, combatente da ditadura. Tempos depois, soube que tinha ingressado no curso de Filosofia da Universidade Gama Filho.
A ditadura continuou, acabou e não mais tive nenhuma notícia do jovem e vibrante Dirceu, amante da cultura e da literatura. Um vez, conseguiu publicar um pequeno jornal da CESB, no qual entrei com um artigo, de cujo tema não me lembro mais agora, afinal, já se passsaram quarenta e oito anos! O jornalzinho não passara do número de estreia. Outra vez, realizou uma noite literária, com discurso, declamações de poema. Nesta noite, declamei o famoso soneto “Saudade”, do poeta piauiense Da Costa e Silva (1885-1950). Mal sabia eu que, anos mais tarde, escreveria uma dissertação de Mestrado enfocando aspectos da obra do mais aclamado poeta do Piauí, Da Costa e Silva: uma leitura da saudade que, em 1996, seria publicada em livro pela Academia Piauiense de Letras em convênio com a Universidade Federal do Piauí, com prefácio da minha ex-professora de literatura brasileira do Mestrado, Gilda Salem, já falecida.