O Caso Pontes Visgueiro
Por Reginaldo Miranda Em: 11/03/2020, às 14H59
Reginaldo Miranda*
Um caso judicial que teve a mais funda repercussão nas províncias do norte-nordeste do Brasil durante o Segundo Reinado, foi o assassinato com requintes de crueldade de uma jovem e bela meretriz, mal saída da adolescência, pelo sexagenário desembargador da Relação do Maranhão, José Cândido de Pontes Visgueiro.
Foi cenário desse horrendo crime o solar do velho magistrado, na Rua São João, 124, centro histórico da cidade de São Luiz do Maranhão, em 14 de agosto de 1873. O Caso Pontes Visgueiro, é um clássico da história criminal brasileira, seja pela honorabilidade do assassino, seja pelas circunstâncias do homicídio.
José Cândido de Pontes Visgueiro, era natural de Maceió, onde nascera em 13 de outubro de 1811, filho de Manoel do Nascimento Pontes e Adriana Maria de Pontes, todos de ilustrada estirpe; ali cursou os primeiros estudos até os preparatórios, depois mudando-se para São Paulo, em cuja academia conquistou a láurea de bacharel em ciências jurídicas e sociais, em outubro de 1834, com 23 anos de idade. De retorno à terra natal, iniciou carreira na magistratura. Em seguida, ingressou na política sendo eleito deputado provincial e depois deputado geral em uma das legislaturas mais agitadas de nosso Parlamento, distinguindo-se não só pela vivacidade das palavras como pela coragem das atitudes. Era de grande presença de espírito, ardente e leal, corajoso e desassombrado, no dizer de Humberto de Campos.
Depois dessa carreira parlamentar retornou a Alagoas, onde retomou sua carreira na magistratura ao assumir o cargo de juiz de direito da capital, demorando-se ao todo mais de dez anos. Diz-se que era um magistrado íntegro, sabendo distribuir justiça com equidade, independência e compostura. No entanto, um fato vai ligar definitivamente seu nome ao Piauí. Por decreto de 16 de setembro de 1847, Pontes Visgueiro foi removido do lugar de juiz de direito da comarca de Alagoas, para a de Parnaguá, no Piauí[1]. Segundo um periódico da época, “em Parnaguá tinha chegado o Juiz de Direito Dr. José Cândido Pontes Visgueiro, ex-deputado pelas Alagoas, e talvez o primeiro Juiz de Direito que se atreveu a ir habitar aquele sertão”[2]. E ali se demorou por cerca de dez anos, gozando os ares puros de nosso sertão longínquo, alimentando-se com carne de gado cevado nas campinas verdejantes do vale do rio Paraim e pescados colhidos na lendária lagoa de Parnaguá. Fez amizades para a vida toda.
Mais tarde, em princípio do ano de 1857, foi removido para a cidade de São Luís do Maranhão ali continuando a exercer a magistratura com idoneidade, altivez e independência. Como recompensa pelo desvelo profissional, foi nomeado para desembargador da Relação do Maranhão, por decreto 15 de outubro de 1857, tomando posse do cargo em março do ano seguinte. Três anos depois, foi removido da Relação do Maranhão para a de Pernambuco, pelo decreto de 11 de setembro de 1860, porém, esse ato não se efetivou porque o decreto de 20 de outubro do mesmo ano, tornou sem efeito esta remoção. Queria a mão trágica do destino que ele continuasse na capital maranhense. Enfim, pelo decreto de 2 de novembro de 1861, foi o desembargador Pontes Visgueiro nomeado para o lugar de fiscal do tribunal do comércio da província do Maranhão. Era, pois, uma autoridade de relevo, limpo, sem mácula, ilustrado, de reputação ilibada, figura respeitável da sociedade maranhense, onde gozava de largo prestígio profissional e social[3].
No entanto, o velho e respeitado magistrado vivia solitariamente, quase completamente surdo, nunca tendo convolado núpcias. Uma filha havida de amores dos tempos estudantis, Aristhéa, por ele reconhecida e criada por seus pais, também morava naquela cidade, mas tinha vida própria, sendo casada com um magistrado em início de carreira, depois também desembargador, Basílio Quaresma Torreão.
Ali na velha cidade de São Luiz, levava ele sua vida de forma respeitável e tranquila, embora um pouco solitária, vivendo entre seu confortável sobrado e os salões e plenário do tribunal de justiça. No entanto, certo dia, da janela de seu sobrado avistou uma formosa rapariga, de apenas 15 anos de idade, por nome Maria da Conceição, chamada Mariquinhas, que na calçada passava em companhia de sua genitora, que a explorava. A forma graciosa, corpo bem formado, porte airoso, pele banca com cabelos negros e lisos, era um tipo que a todos os amantes do belo sexo agradava. Então, Pontes Visgueiro desceu as escadas e com ela, à calçada, travou os primeiros contatos, assim descobrindo a sua condição. De forma imediata, caiu de amores pela mesma, sucumbindo à paixão fulminante. Em pouco tempo passou a encher-lhe de beijos e presentes. Mesmo sabendo tratar-se de jovem prostituta quis com ela fazer união duradoura, aventando levá-la para o seu sobrado, pois a amava perdidamente. Porém, a indomável meretriz não desejava ser mulher de um só homem, sobretudo daquele velho sexagenário. Embora ficando com ele regularmente, procurava outros homens mais jovens e rijos para satisfazerem à sua lascívia. Em vez de fortuna e conforto que poderia advir daquele relacionamento, buscava os prazeres da carne, o que desesperava o velho amante. Com o tempo o ancião passou a procurá-la pelos prostíbulos, onde a encontrava nos braços de outros. E implorava por seu amor. Contudo, quanto mais a procurava mais ela se esquivava. Com isto o desembargador foi praticando atos vis em lugares públicos, perdendo a compostura e o respeito da família e dos amigos. A filha ainda o mandou, de licença, para a vila de Parnaguá, onde ele deixara sólida amizade, para ver se com a distância arrefecia a paixão pela meretriz. De fato, ele ali permaneceu por alguns meses na fazenda Mocambo, hospedado na residência do Barão de Paraim. Porém, maior do que a distância foi a saudade e a paixão pela pequena e indomável meretriz de São Luís do Maranhão. Com a alma ardente de desejo não correspondido retorna àquela cidade, continuando tudo novamente no ponto em que fora suspenso.
Então, planejou o crime hediondo, atraindo-a para o seu sobrado. Na verdade, ela recusou diversos convites, talvez por desconfiar de sua insistência, porém, ali compareceu, às 13 horas daquele dia fatídico, na companhia de uma colega. Contudo, com a posterior saída desta ficaram a sós, na sala, recebendo ela doces do anfitrião. Posteriormente, pediu este para que fossem até determinado quarto, no sótão. Quando ela adentrou aquele recinto foi atacada por Guilhermino, um rapazote que viera com ele de Parnaguá, e que se encontrava escondido por trás da porta, segurando-a pelo pescoço e amordaçando-a. Em seguida, o desembargador a fez desmaiar sobre o soalho colocando um frasco aberto com clorofórmio sobre seu nariz. Sai, então, o amigo e comparsa deixando-os, com ela desfalecida. Então, o velho e até então honrado desembargador, com a mente obnubilada pela paixão doentia, a matou com diversas punhaladas, depois mordendo e beijando loucamente o cadáver. Em seguida, com a ajuda de um escravo, colocou seu corpo dentro de um caixão de zinco adredemente preparado, cobrindo-a de cal. No entanto, porque o caixão era pequeno, teve de decepar a cabeça e uma das pernas para melhor acomodá-lo. Depois de assim praticar, lavou-se cuidadosamente e foi a uma festa familiar na casa de um Dr. Lacerda. Alta hora da noite, ao retornar para casa foi admoestado pela mãe da menor, que o esperava na calçada em procura da filha. Disse-lhe que, de fato, ela ali estivera por cerca de uma hora e dando-lhe alguns presentes a despachou. No entanto, ninguém a vira depois daquele episódio. Passou, assim, o velho magistrado três dias com aquele corpo ali na sala de jantar, sob seu olhar. E já encontrando-se em adiantado estado de putrefação, chamou para soldar o caixão de zinco, um profissional que lhe devia favores, o ourives Amâncio José da Paixão Cearense, seu compadre, pai do famoso poeta Catulo da Paixão Cearense, que fizera o ataúde sem saber o destino. Este, embora horrorizado soldo-o, assim, pagando o favor devido. Depois de soldado foi o caixote colocado dentro de outro de madeira, também sendo fechado[4].
Pontes Visgueiro, poderia ter lançado aquele corpo ao mar, que ficava próximo de seu sobrado, livrando-se do incômodo. Porém, desejava mantê-lo consigo e somente se viu obrigado a sepultá-lo no quintal de casa quando as investigações chegaram à sua pessoa. Não tinha como escapar, pois todas as informações sobre o paradeiro da menor levavam ao seu sobrado. Então, sem saída, com a polícia à porta pediu a ajuda de Guilhermino e de um seu escravo, cavando um pequeno buraco no fundo do quintal, onde enterrou o caixão com apenas dois palmos de profundidade. Parece que desejava desenterrá-lo quando as investigações cessassem. Dessa forma foi fácil à polícia encontrá-lo e desvendar o crime praticado pelo velho magistrado. O caso teve grande repercussão, com tentativa de linchamento pela população. Porém, dadas as suas prerrogativas de função, ninguém tinha poderes para prendê-lo no Maranhão. Por essa razão, tiveram de requerer a ordem perante o Supremo Tribunal de Justiça. Mais tarde, ele ali também fora julgado em histórica sessão realizada em 13 de maio de 1874, no Rio de Janeiro. A defesa na tribuna foi feita pelo advogado Franklin Américo de Meneses Dória, genro do marquês de Paranaguá, em virtude de repentina viagem do senador Francisco Octaviano, um dos advogados de Pontes Visgueiro. Eram as amizades feitas em Parnaguá, que agora mostravam-se úteis na hora do aperreio[5].
Foi o desembargador Pontes Visgueiro, condenado à prisão perpétua, trabalhos forçados e encarcerado na Casa de Correção, no Rio. Por decreto de 4 de julho de 1874, foi declarado vago, de conformidade com as leis do império, o lugar de desembargador da Relação do Maranhão, que era por ele exercido, em virtude de sentença do Supremo Tribunal de Justiça. Segundo Humberto de Campos, um ano depois foi ele visto de cabeça raspada, como a dos galés, a barba comprida e branca, vestido de zuarte, um número de metal pendente da cintura, trabalhando na oficina de encadernação.
Faleceu na casa de correção, em 24 de março de 1875, às oito e meia da manhã, com 64 anos de idade. No entanto, porque o caixão não fora aberto durante o velório e sepultamento, correm muitas lendas sobre o seu destino, muitos dizendo que fugira para o exterior contando com a ajuda da Maçonaria, o que registramos a título de informação. Para o criminalista Evaristo de Moraes, que analisou o caso muitos anos depois, o julgamento foi eivado de erros, merecendo ele um manicômio, por anomalia psíquica e não a casa de correção. Em suma, foi uma vítima das paixões humanas, o homem sisudo da toga que perde-se de amores por uma rapariguinha indomável e formosa. Antes de falecer, lavrou testamento em 5 de janeiro de 1875, onde esclareceu muitos dados de sua biografia e demonstrou preocupações com o futuro da filha, instituindo-a como sua herdeira universal e deixando-lhe alguns bens para ela, em vida ou para suas três netinhas, em caso de morte da filha: Maria Raimunda, Maria Antonina e Maria Altina. Declarou, entre outras coisas, ter três irmãs: Maria e Teresa, esta casada com o dr. Manoel Lourenço da Silveira e aquela com o desembargador Silvério Fernandes de Araújo Jorge; “e um irmão, o Dr. Manoel Adriano da Silva Pontes, que faleceu em Paris, em novembro de 1869, por moléstia adquirida na campanha do Paraguai, sendo esta a sua mais pungente recordação, porque, se ele vivesse, a sua sorte teria sido outra”, desabafou textualmente; “Nada dispôs sobre sufrágios à sua alma, por confiar muito na piedade de sua filha, e, uma vez que tem de morrer longe dela, pouco importa o modo pelo qual seu corpo tem de ser atirado, desconhecido, na vala de algum cemitério. Declarou ainda que não foi inimigo de ninguém, no verdadeiro sentido da palavra: e se inimigos teve, perdoa-lhes todo o mal que lhe fizeram. Sendo humano e piedoso, e tendo muito amor à justiça e ao próximo, se o seu espírito se desvairou um dia, que perdão poderá desejar dos homens? Quem podia perdoá-lo já não existe”[6]. Assim findou-se esse magistrado brasileiro.
[1] Publicador Maranhense, 21.10.1847.
[2] O Observador, São Luiz, 18.8.1848; O Echo Liberal, 18.7.1850.
[3] Publicador Maranhense, 15.11.1860; 21.12.1861; O Expectador, 26.10.1860; Oitenta e Nove, 30.6.1874; Diário do Rio de Janeiro, 3.9.1873.
[4][4] Diário do Rio de Janeiro, 3.9.1873; Pacotilha, 12.4.1950.
[5] A opinião Conservadora, 18.8.1874; A imprensa, 16.1.1886; O combate, 31.12.1945.
[6] Jornal do Comércio, 25.3.1875.
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* REGINALDO MIRANDA, advogado e escritor. Pertence à Academia Piauiense de Letras, ao Instituto Histórico e Geográfico do Piauí e ao Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-PI.