O caos da poesia
Em: 23/01/2010, às 11H56
D. H. Lawrence
A poesia, dizem, é uma questão de palavras. E é verdade, tanto quanto a pintura é uma questão de tinta e o afresco, uma questão de água e ocra. Mas isso está tão longe de ser toda a verdade que soa um tanto simplista quando dito secamente.
A poesia é uma questão de palavras. A poesia consiste em combinar palavras para fazê-las ondular e vibrar e colorir. A poesia é um jogo de imagens. A poesia é a iridescente sugestão de um idéia. A poesia é todas essas coisas e, contudo, é algo mais. [...]
A qualidade essencial da poesia consiste em que ela exige um esforço renovado da atenção, e que “descobre” um mundo novo no interior do mundo conhecido. O homem, e os animais, e as flores, vivem todos dentro de um caos estranho e permanentemente revolto. Chamamos cosmo ao caos ao qual nos acostumamos. Chamamos consciência – e mente, e também civilização - ao indizível caos interior de que somos compostos. Mas trata-se, em última instância, do caos, iluminado por visões, ou não iluminado por visões. Exatamente como o arco-íris pode ou não iluminar a tempestade. E, tal como o arco-íris, a visão perece.
Mas o homem não pode viver no caos. Os animais podem. Para o animal tudo é caos, havendo apenas algumas poucas e recorrentes agitações e aparências em meio ao tumulto. E o animal fica feliz. Mas o homem não. O homem deve envolver-se em uma visão e construir uma casa que tenha uma forma evidente e que seja estável e fixa. No pavor que tem do caos, começa por levantar um guarda-chuva entre ele e o permanente redemoinho. Então, pinta o interior do guarda-chuva como um firmamento. Depois, anda à volta, vive, e morre sob seu guarda-chuva. Deixado em herança a seus descendentes, o guarda-chuva transforma-se em uma cúpula, uma abóbada, e os homens começam a sentir que algo está errado.
O homem ergue, entre ele e o selvagem caos, algum maravilhoso edifício de sua própria criação, e gradualmente torna-se pálido e rígido embaixo de seu pára-sol. Então ele se torna um poeta, um inimigo da convenção, e faz um furo no guarda-chuva; e oba!, o vislumbre do caos é uma visão, uma janela para o sol. Mas depois de um certo tempo, tendo se acostumado à visão, e não lhe agradando a genuína golfada de ar do caos, o homem do lugar-comum rascunha um simulacro da janela que se abre para o caos, e remenda o guarda-chuva com o remendo pintado do simulacro. Isto é, ele se acostumou à visão; ela faz parte da decoração de sua casa. De maneira que o guarda-chuva finalmente parece um amplo e brilhante firmamento, de vistas variadas. Mas, que pena!, é tudo simulacro, feito de inumeráveis remendos. Homero e Keats, cheios de anotações e acompanhados de um glossário.
Esta é a história da poesia em nosso tempo. Alguém vê Titãs no ar selvagem do caos, e o Titã torna-se uma parede entre as sucessivas gerações e o caos que elas deveriam ter herdado. O céu selvagem pôs-se em movimento e cantou. Até isso torna-se um grande guarda-chuva entre a humanidade e o céu de ar fresco; ele tornou-se, então, uma abóbada pintada, um afresco num teto abobadado, sob o qual os homens empalidecem e se tornam infelizes. Até que um outro poeta faça um buraco no amplo e tempestuoso caos.
Mas finalmente nosso teto não nos ilude mais. É gesso pintado, e nem todo o engenho de todas as épocas da humanidade conseguirá mais nos enganar. Dante ou Leonardo, Beethoven ou Whitman: oba!, pintaram no gesso de nossa abóbada. Como São Francisco pregando para os pássaros em Assis. Maravilhoso, como o ar e o espaço passarinheiro e o caos de muitas coisas – em parte porque o afresco desbotou. Mas ainda assim, ficamos felizes em sair daquela igreja, e entrar no caos natural.
Esta é a grave crise para a humanidade, quando temos que voltar ao caos. Enquanto o guarda-chuva servir, e o poeta fizer furos nele, e a massa de gente puder ser gradualmente educada para a visão no furo: o que significa que eles o remendam com um remendo que se parece com a visão no furo: enquanto esse processo puder continuar, e a humanidade puder ser educada, e assim encaixada, a civilização continuará mais ou menos feliz, completando sua própria e pintada prisão. Isso chama-se completar a consciência.
A alegria que os homens tiveram quando Wordsworth, por exemplo, fez um furo e viu uma prímula! Até então, os homens tinha visto uma prímula apenas obscuramente, na sombra do guarda-chuva. Eles a viram por meio de Wordsworth no pleno brilho do caos. Desde então, gradualmente, acabamos por ver na primavera nada mais do que prímulas. O que significa que remendamos o furo.
E a grande alegria quando Shakespeare fez um grande rasgo e viu o homem emocional e desejoso ao desabrigo, no caos, para além da idéia convencional e do guarda-chuva pintado das imagens morais e dos rígidos paladinos, que foram instituídos na Idade Média. Mas agora, que pena!, o teto de nossa abóbada está simplesmente todo pintado de Hamlets e Macbeths, as paredes laterais também, e a ordem está fixada e completa. O homem não pode ser absolutamente diferente dessa imagem. O caos fica inteiramente do lado de fora.
O guarda-chuva ficou tão grande, os remendos e o gesso estão tão rígidos e duros que ele não pode ser mais furado. Se fosse furado, a abertura não seria mais uma visão, mas apenas uma afronta. Deveríamos borrá-lo todo de uma vez, para combinar com o resto.
Assim, o guarda-chuva torna-se absoluto. E assim o desejo do caos torna-se nostalgia. E isso continuará até que algum vento terrível parta o guarda-chuva em tiras, e destine a maior parte da humanidade ao esquecimento. O resto gelará em meio ao caos. Pois o caos está sempre ali, e sempre estará, não importa como armemos guarda-chuvas de visões.
E que dizer dos poetas, então, nesse intervalo? Eles revelam o desejo interior da humanidade. O que eles revelam? Eles mostram o desejo de caos, e o medo do caos. O desejo de caos é o sopro de sua poesia. O medo do caos está em seu desfile de formas e técnica. A poesia é feita de palavras, dizem eles. Assim, eles sopram bolhas de som e imagem, que logo explodem com o sopro do desejo de caos de que estão plenos. Mas os poetastros podem fazer reluzentes bolhas para a árvore de Natal, que nunca explodem, porque não existe qualquer sopro de poesia nelas, mas elas ficam lá até que as derrubemos.
[Selected Critical Writings, p. 234].
Tradução de Tomaz Tadeu
Publicado originalmente em tomaztadeu.net/