O Caderno Surrealista de Iban
Em: 05/02/2019, às 13H00
UM NÓ VIVO FULGURA NO POSICIONAMENTO DA POIESIS: QUANDO
No emblemático Manifesto do Surrealismo de 1924, André Breton (1896 – 1966) defende a ideia deste que foi um dos movimentos mais importantes do século XX: “Só a imaginação me dá contas do que pode ser, e é bastante para suspender por um instante a interdição terrível; é bastante também para que eu me entregue a ela, sem receio de me enganar”. O surrealismo propôs a libertação da imaginação para acendê-la numa busca sem fronteiras, e conseguiu, entre diferentes níveis de relações, o equilíbrio entre o que as palavras poderiam gerar e a sua disponibilidade para a leitura infinita.
A maneira de pensar e criar na expressão ampla da liberdade ante a “qualquer controle exercido pela razão, e a isenção de qualquer preocupação estética ou moral” fez o movimento ganhar corpo e força além da França de Breton. Em 1961, é publicada em Portugal a Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito com a organização de Mário Cesariny (1923 – 2006) e a colaboração, ocasional, de Herberto Helder (1930 – 2015). Helder, que diziam ser e não ser surrealista, apresentou-se no centro dessa busca, onde soube de forma espantosa e única construir uma poética de “fantasia minuciosa”, adentrando o corpo no “poder da loucura”. Em toda sua poesia, temos a ilusão de que os versos, tão densos, se formam como um conjunto de designações em que “a vida é um buraco negro com palavras ao redor”. Helder parece adentrar o epicentro de Ibán por aqui.
Construir um novo elo com esses pensadores parece ser uma das indagações e construções precípuas deste novo trabalho do poeta piauiense Lucas Rolim (1995). O Caderno Surrealista de Ibán, um breve e intenso conjunto de 12 poemas, corrompe o dorso contemporâneo. É um livro que apresenta uma das vozes mais interessantes da nova poesia brasileira: “É no baixo curso dos ventos a primeira morte”.
O início do livro prenuncia sua essência: evidenciar das fraturas e dos excessos, o magnetismo da voz, do corpo, da imutabilidade de ser humano em relação à natureza. Mas Rolim contrapõe os elos do surrealismo com uma diversificada conexão própria, que em certas partes remetem ao expressionismo, nas figuras de poetas alemães como August Stramm (1874-1915) e Else Lasker-Schüler (1869–1945), e em outros momentos, ao existencialismo, em figuras como a do poeta espanhol Antonio Machado (1875 – 1939), que emergia, lúdico, quando ao “caminhante não há caminho, senão rastros no mar”.
Enquanto o tempo neste livro se edifica, também se dissipa no silêncio e no sono que nos recobre os olhos. “E lemos: IBÁN”, lemos de forma serena e melancólica. Pois há um caderno de emanações ressoando, um terrário, um canto que perpassa Eleanor e o Mirábolo: “Afinal, que diriam os espíritos criadores?”
Rolim parece ter como missão uma transgressão da linguagem, construindo de forma equilibrada um desregramento dos sentidos habituais da poesia contemporânea: “Talvez oculta entre as dormideiras e os favos, / a flauta envolvesse nas ervas o seu pulmão”; pois “talvez dormisse o mais triste homem / o mais tenro sono”.
Conforme a natureza compõe e fatiga a biologia, na síntese da vida “O nome da estrela ardia sobre a casa”. O eu-lírico parece prenunciar que o acúmulo da existência rompe e mortifica: “Quantas cidades dormem sobre este peito convertido em pássaro?” mesmo quando “As paredes mugiam ao longe”.
O animalesco é neste livro sensibilidade, onde “As coisas fundem-se na atenção branca de um / corpo vazio”. Logo que na finitude “Tudo é mais sagrado neste momento”, Ibán recobre as traças em auríferos instantes. “O século nos parte ao meio. Silencioso”, mesmo quando “Recolher o espólio dos amores é preciso”.
Sedentos, enfim, pairamos. Lendo estes versos, talvez poderemos reler o inominável. Seguindo ermos e reflexivos, um pouco menos cansados, logo apresentaremos o tempo, encerrando-o na liberdade do caderno em nós. “E mergulham os espaços / nos antiespaços”.
Mariana Basílio
Bauru, 02 de junho de 2018