Rua Benedito Valadares, vista parcial
Rua Benedito Valadares, vista parcial

 

Acordo, abro a porta da varanda (segundo a escritura, trata-se de uma sacada, contudo, prefiro chamá-la de varanda: confere dimensão, amplia o campo de visão, me faz lembrar os tempos de meninice). Aberta, pois, a porta da varanda, a brisa adentra a sala. Sem pedir licença, refestela-se no sofá, penetra os corredores. Que bom: talvez leve embora o futum de fumaça que se adonou da casa.

Difícil dormir nas últimas noites: o ar cada vez mais pesado, a fumaça, sufocante. Em horas assim, recordo o que dizia minha vó: o mundo há de acabar em fogo. Mas, antes que tudo vire cinzas, me deixem sorver a brisa da manhã, sentir no rosto por barbear o sol de quase-primavera.

Um vira-latas, negro como fumaça, se coça no pátio da escola. Sob as patas, folhas secas, solo seco, restos de grama igualmente secos. Até o pouco de dourado que desabrochou no ipê tem um quê de secura. “Tempos estranhos, esses”, sussurra-me o urubu encarapitado no telhado.

O buraco no asfalto, diante do portão da escola, comemora dez dias. Sim, há dez dias está ali, imponente, desafiador a jorrar água na rua. Ninguém, absolutamente ninguém, toma providências: a empresa de água e esgoto ignora reclamações, as autoridades munícipes estão assoberbadas com comícios e assuntos eleitoreiros. Felizmente, apesar da estiagem, ainda não falta água nesta urbe.

Ontem, uma vizinha postou no Instagram: o buraco só aumenta, qualquer hora um carro cai ali dentro. Respondi que, se cair, vai vazar lá no Japão. Ela enviou um emoji gargalhando, eu fiquei a recordar o buraco de Greenville, aquele onde caiu o delegado Motinha. Caiu, e sumiu. Tempos depois, reapareceu casado com uma gueixa que encontrou no Japão. Realismo fantástico, maluquices do Aguinaldo Silva? Já, já acontece algo semelhante com o buraco da Benedito Valadares. Como dizia outra personagem novelesca: Quem viver, verá! 

Voltando à escola... Bem, voltar é modo de dizer porque eu continuo plantado aqui, na varanda. E o vira-latas continua se coçando no meio das folhas secas. Um homem de óculos estica a mangueira, molha os bloquetes do pátio. Encostada na árvore, cara de décadas de magistério, uma dona fuma. O sujeito reclama do “poeirão que junta todo dia” e “ainda tem a bosta dessa árvore que só serve pra sujar”. A dona fuma, em silêncio. “Qualquer dia nós corta ela fora”, ele diz, a decisão brilhando através das lentes grossas. A dona descarta a bituca, acende outro cigarro.

Vem subindo a rua uma van, adesivada até o teto com carantonhas de candidatos e seus respectivos nomes. Desnecessário os nomes, afinal, são as mesmas raposas disputando a carne pública, sedentas pelas tetas governamentais. A van passa igual foguete pelo cruzamento, espirra água do buraco na calçada, segue seu rumo. Essa não vai pro Japão.

Na escola, o sujeito lava um carro sob o olhar cúmplice da fumante. Público e privado, eternamente imbricados nesta terra fadada a ser o que é, ou seja, nada. O urubu, como se lesse meus pensamentos, meneia a cabeça.