Elmar Carvalho
 
Juciê, em Cangapara, era considerado um menino rico. Tinha os melhores brinquedos, comprados em lojas da capital. Usava belas roupas, de tecidos caros. Estudava no melhor colégio da cidade. Seu pai, o médico Juliano Castro, já fora prefeito do município por duas vezes. Comentava-se que seria eleito novamente, na próxima eleição. Quem o atrapalhava era sua esposa, dona Sílvia, mulher de poucos amigos e de nenhum sorriso, sempre sisuda e fechada em si mesma e em sua casa.
 
O menino, na manhã daquele 25 de dezembro, puxava o brinquedo que encontrara debaixo de sua cama, ao acordar. Era um lindo ônibus, que o pai fora comprar na capital, como costumava fazer. De cor azul, mostrava os passageiros e o motorista, com sua bela farda, à janela. Tinha todos os detalhes que um ônibus de verdade possuía, inclusive faróis que acendiam, lanternas que piscavam e buzina de bonito som musical. Entretanto, o garoto admirava os caminhões que o Zeca fazia, utilizando as latas de flandre de óleo vegetal, restos de tábua de caixotes e outros materiais menos nobres. Zeca trabalhava na oficina de marceneiro de seu pai, ajudando-o, o que lhe prejudicava a aprendizagem escolar, uma vez que quase não dispunha de tempo para fazer os deveres de casa e para se preparar para as provas. Nas horas de folga, quando seu pai não estava presente, fazia os seus próprios brinquedos, geralmente caminhões. Fazia-lhes a cabina com os flandres das latas vazias. Os faróis eram feitos com tampas, que ele achava nas ruas ou nas mercearias. As rodas eram de madeira, revestidas de borracha. A suspensão era feita com flexíveis ligas metálicas. O eixo das rodas dianteiras giravam, na hora de fazer a curva. Quando o caminhão, com a sua carga, quase sempre carteiras de cigarros ou caixas de fósforos vazias, passava sobre algum buraco, balançava, por causa do feixe de molas da suspensão. Eram precisamente o giro do eixo dianteiro e as molas que mais despertavam a profunda admiração de Juciê. Por isso, desejava esse brinquedo humilde mais do que os seus ricos brinquedos, comprados em lojas da cidade grande.
 
Quando Juciê viu o Zeca a puxar o seu caminhão de lata, feito por ele mesmo, não se conteve, e, num impulso, lhe propôs a troca dos brinquedos. Zeca, por sua vez, tinha verdadeira paixão pelos brinquedos do menino rico, mas acalentava esse seu sentimento no fundo de sua alma, sem nada revelar a ninguém, como se fosse um sonho absurdo e impossível, quase um pecado inconfessável. Inicialmente, duvidou da proposta que lhe fora feita. Sem querer acreditar no que ouvira, perguntou o que Juciê desejava. Este repetiu o que dissera. Sem mais delongas, o negócio foi feito. O menino rico, depois de fazer o Zeca prometer que não desfaria o negócio, com grande emoção e felicidade, saiu a puxar o caminhão de madeira e flandre; o pequeno marceneiro ficou a dirigir o ônibus sofisticado. Para testá-lo, acendeu-lhe os faróis, ligou o pisca-pisca e acionou a buzina. Ambos os garotos ficaram muito contentes com o negócio feito, sem nenhuma ponta de arrependimento, por menor que fosse.
 
Porém, quando dona Sílvia viu o filho a conduzir o caminhão no jardim da casa, perguntou-lhe pelo ônibus. O menino contou sobre a troca dos brinquedos. Ela, então, indagou sobre quem propusera o negócio. Juciê respondeu que fora ele que tivera a iniciativa. Sílvia, imediatamente, mandou que a empregada fosse até a casa dos pais de Zeca, e dissesse para o garoto vir a sua casa, trazendo o ônibus. Ana, mãe de Zeca, não entendeu direito o porquê do recado, mas tão-logo viu o filho com o brinquedo de luxo compreendeu tudo. Interrogou o filho a respeito da troca dos carrinhos. Quis saber de quem fora a ideia. Zeca falou que a iniciativa fora de Juciê. Ana, sem perda de tempo, lhe mandou fosse até a casa de Juciê, e se fosse para desfazer a permuta, que ele não criasse nenhuma dificuldade. Ao chegar, a matrona foi logo lhe perguntando se fora ele quem procurara seu filho, para fazer a permuta dos brinquedos. Ante a negativa de Zeca, Sílvia lhe disse que o presente de seu filho era caro, ao passo que o caminhão era feito apenas de lata e madeira, e confeccionado em Cangapara mesmo. Insinuou que Zeca se aproveitara da ingenuidade e inexperiência de seu filho, que era mais novo, conquanto a diferença de idade fosse de menos de ano. O garoto voltou para sua casa humilhado, envergonhado, e se recolheu a seu quarto, onde chorou silenciosamente, embora sem poder abafar os soluços.
 
Seu pai, o marceneiro José Silva, era um homem correto, trabalhador, porém rude, e dado a beber nos dias de sábado, após o meio-dia. Quando chegou a sua casa, no começo da noite, um tanto embriagado, um de seus filhos foi ao seu encontro, e lhe contou a história da troca dos brinquedos, sem esquecer de narrar o humilhante recado de dona Sílvia, com o consequente desfazimento da permuta. O marceneiro, com o raciocínio embotado pelo álcool, considerou o caso uma grande humilhação para si e para sua família, e voltou sua fúria toda contra o filho Zeca, contra o qual descarregou sua ira em vigorosas chibatadas. O menino chorou para dentro, em silêncio, sem gritos e sem clamores. Depois, ficou no escuro do quarto a soluçar e a refletir sobre a injustiça daquelas chibatadas, sem que seu pai tivesse se dado, sequer, ao trabalho de lhe perguntar sobre o que realmente ocorrera.
 
Quando seus irmãos entraram no quarto não encontraram o Zeca. A janela, que dava para a rua, estava apenas encostada. Aguardaram até as nove horas da noite, sem que o irmão retornasse. Foram comunicar o fato à mãe, uma vez que o pai já estava completamente entregue ao sono pesado da embriaguez. Ana mandou que os dois filhos fossem atrás do irmão. Não houve notícia. Apenas um menino da vizinhança disse que o vira no posto de combustível, mas no estabelecimento os frentista disseram não tê-lo visto. Nunca mais se teve notícia do Zeca.
 
A polícia investigou o seu desaparecimento, sem sucesso. Duas hipóteses predominaram na investigação: ou ele teria se afogado no igarapé, caso em que seu corpo teria sido devorado pelos peixes, ou teria se metido, sorrateiramente, no meio da carga de algum caminhão, e desaparecera em alguma cidade grande do sul do país. Soube-se que dona Sílvia, indagada sobre o caso, dissera que Zeca teria fugido por causa da consciência culpada, em virtude de haver tentado enganar seu filho. Muitos anos mais tarde, no fundo do poço que havia no quintal, o caminhão de lata e madeira de caixotes foi encontrado, com a cabina completamente enferrujada.