O assassinato do motorista Gregório em romance

ENTREVISTADO:

Eneas Barros

Dilson Lages: A narrativa se desenvolve em Barras nas décadas de 1920 e 1930. Qual o retrato geográfico e social da cidade nesse período, segundo Parabélum?

Eneas Barros: O grande problema do interior piauiense, naquela época, eram as distâncias e a falta de estradas que facilitassem o fluxo de veículos. Para que você tenha uma idéia, o tenente Florentino trouxe Gregório em um caminhão, saindo de Barras às 23h00 e chegando a Teresina às 07h00 – oito horas de viagens! Esse aspecto afetava o desenvolvimento social em relação à moda, à política, às notícias mais urgentes. Mas a cidade, como vive em uma região de águas em fartura, sempre se beneficiou disso para se confraternizar e criar os seus momentos de lazer.

Dílson Lages: O senhor descreve na página 39 os aglomerados de casas à beira das estradas e a vida que nelas brota, e vai revelando um gosto especial pela gente mais simples, a partir de concepção de mundo determinista. É o determinismo que guia o destino dos personagens principais na obra?

Eneas Barros: É comum as regiões de bifurcações rodoviárias criarem em seu entorno uma grande concentração de serviços ou sub-serviços. Veja o caso de Picos como grande entroncamento rodoviário, assim como Feira de Santana, na Bahia. É uma válvula de escape para as cidades ou, em sentido contrário, também um forte indutor da marginalidade, porque é nesses entroncamentos que se despejam todo tipo de aventureiro. Ali há a bifurcação para Parnaíba, onde a estrada faz uma volta radical, dando margens à prostituição e à comercialização de todo tipo de produto. Do ponto de vista social, não acredito que haja determinismo na condução da vida, porque as pessoas são capazes de mudar o seu próprio rumo. Mas do ponto de vista dos personagens, há um momento em que o autor é conduzido pela trama, muitas vezes se deixando levar por situações que não desejaria a certo personagem. Quando o tenente passa pelo entroncamento com José Durão, não tive a intenção de fazer com que Severão os avistasse e os seguisse, mas ele estava lá, tomando café. Talvez eles tivessem coragem suficiente para descansar sob uma daquelas palhoças, mas a trama os empurra para longe, independente do que o autor está pensando.

Dilson Lages: Por que o senhor optou por dividir o romance em  episódios que não obedecem a uma sequência linear? O que essa organização significa para a tessitura da obra, na perspectiva do autor?

Eneas Barros: Na verdade, são dez capítulos que dividem a obra. Há um estilo que me acompanha, que me facilita escrever. Veja que o primeiro capítulo chama a atenção para a fuga do tenente, que ocorreu em 1928, quase oito meses após o assassinato. Esse capítulo ajuda a gerar uma expectativa no leitor. Os capítulos seguintes são fatos isolados que se cruzarão num momento futuro, para dar uma dinâmica à trama e levar à prisão e ao julgamento do assassino. Esse sistema de condução da narrativa prende o leitor, tornando a leitura agradável.

Dílson Lages: Quais cuidados o escritor teve para impedir que o tom de documentário, próprio da história ou das estórias que sustentam a trama, não superassem a ficção? Dito de outra forma, o que é, no romance, precisamente história? O que é precisamente ficção?

Eneas Barros: Posso lhe dizer que a ficção entra nos instantes em que não pude comprovar os fatos. Fiz uma pesquisa muito grande, mas não consegui todas as informações. Há muitas contradições nos depoimentos de pessoas e nas informações de época. É preciso filtrar um pouco. O fato do tenente ter sido capturado na Bahia me levou a criar um cenário especial, porque ele mesmo nunca disse por onde andou enquanto esteve foragido. Em uma entrevista ao jornal O Estado, ele afirma que cansou de se esconder e resolveu se entregar. Não é verdade. Ele foi capturado e trazido de volta para o Piauí. É óbvio que as circunstância de sua prisão são desconhecidas. A personagem Mariazinha, por exemplo, representa a parte da sociedade que acha que Gregório deveria virar santo, a parte do milagreiro. Muitos personagens são verdadeiros, como José Durão, o delegado João Braz, a namorada Maria Teresa, o soldado Antonio Chaves, Rosalice, o comerciante Jaime, o doutor Mário, os documentos citados, o advogado, o promotor... É difícil estabelecer precisamente o que é realidade e o que é ficção. Apenas lembro que o livro é uma ficção baseada em fatos reais, portanto não foi escrito para servir de referência histórica. O diretor Bruno Barreto, recentemente, fez uma refilmagem de 174, sobre aquele crime no ônibus, e criou um personagem para acompanhar os passos do assassino em sua história de vida, um personagem nascido da ficção.

Dílson Lages: Além de pesquisa em documentos, o senhor recorreu à memória oral, colhendo depoimentos de pessoas que "conviveram com Gregório ou viveram na época do crime". O que de mais significativo revelaram essas pessoas sobre o episódio?

Eneas Barros: A lembrança dessas pessoas foi de grande importância, porque me facilitou o entendimento de determinadas situações. Maria Teresa, por exemplo, com 104 anos de idade me descreveu o porte físico do namorado Gregório. Pelas características de seu rosto já envelhecido (ela faleceu em princípios deste ano), pude usar a imaginação e voltar no tempo para descrever como ela poderia ter aparentado. Nessas conversas, muitas histórias vão sendo recordadas e vão se incorporando à trama. O desembargador Raimundo José me disse que assistiu a parte do julgamento de Florentino, onde hoje é o Museu do Piauí. Ele tinha oito anos de idade, mas lembra que subiu em um do janelões e pôde ver alguns dos detalhes, chegando a me descrever o local do julgamento, a posição das pessoas, o lugar onde o tenente sentou, onde estava a audiência, o juiz, os jurados etc. E assim fui montando as peças. A fala do promotor e do advogado de defesa busquei nos acórdãos que foram despachados pela Corte de Apelação, em documentos do Arquivo Público. Por esses acórdãos, pude encontrar a essência e montar a fala da defesa e a da acusação.

Dílson Lages: A descrição dos costumes de Barras também aparece na obra. Que o diga o episódio Promessa quebrada. Para o escritor, qual exatamente o papel dessa descrição de costumes na trama?

Eneas Barros: O interior do Piauí é muito parecido em estrutura social. As cidades se formaram de antigas fazendas, cujas capelas centralizavam as reuniões sociais, comandadas pelo coronelismo dos fazendeiros, que geralmente se tornavam políticos. Passear na praça principal à tardinha, promover bailes em residências, tomar banhos de rio e sentir no padre uma das autoridades locais era muito comum. Associado a isso, conversei com algumas pessoas em Barras que me contaram como foi o dia em que dom Severino estava sendo esperado, facilitando a criação do clima de festa na cidade.

Dílson Lages: O senhor escreve que "Padre Lindolfo tinha muitas reservas em relação ao tenente, especialmente pela fama de violências, prisões arbitrárias e espancamento de presos". Nesta e noutras passagens nota-se um retrato de instituições como a Igreja e a Polícia. O que é a igreja em Parabélum? O que é a polícia?

 Eneas Barros: Há muito poucos anos a Igreja se desvencilhou do Estado. Na época da Inquisição, a Igreja atuava em conjunto com o Estado, para fazer as suas imposições da fé. Imagine como era no interior – local privilegiado que a Igreja se mantinha frente à sociedade. Essa forma violenta de ser do tenente era condenada por muitos, conforme informações de A. Tito Filho, que por sinal era de Barras. A relevância da Igreja em Parabélum é o confessionário e o fato de o carro que atropelou a criança pertencer à paróquia, onde Gregório passou a morar. Como disse antes, o padre exercia uma força muito grande na sociedade, sendo maior essa força no meio feminino. Sabe-se que muitos políticos, fazendeiros e coronéis não acreditavam em Deus, mas não contrariavam as suas mulheres. Quanto à polícia, foi peça fundamental porque o tenente era Delegado de Polícia de Barras, um homem que deveria representar a lei e não a arbitrariedade, tornando os seus subalternos impotentes e subservientes, como ainda hoje acontece.

Dílson Lages: Ultrapassando aqui a esfera do romance, como o escritor Eneas Barros vê a reação da sociedade de Barras ao episódio na época?

Eneas Barros: Acredito que tenha havido uma tendência forte a entender que Gregório era inocente e que foi assassinado covardemente. O juiz José de Arimatéia Tito, que foi testemunha ocular, tentou mostrar essa inocência a Gregório, mandando entregar ao tenente um Hábeas Corpus para a soltura do preso. A sociedade com certeza vê no juiz a imparcialidade, a representação da Justiça. Por isso, as pessoas não haveriam de ficar ao lado de um homem que já tinha a fama de “espaldar presos”, como disse A. Tito Filho.

Dílson Lages: O senhor afirma que o delegado incumbido de investigar o assassinato de Gregório "criou um interesse pessoal pelo caso". Para o senhor, enquanto escritor, há mais que um simples assassinato?

Eneas Barros: Com certeza há mais do que isso. Com a fuga de Florentino, o caso se transformou em um desafio, que se somou aos milagres atribuídos a Gregório. Da noite para o dia, criou-se um mito. Como disse Florentino (palavras reais): “transformei um pecador em santo”. No dia de seu julgamento, não havia lugar para tanta gente, com foguetório na cidade e buzinaço.

Dílson Lages: Na obra, o senhor insinua um envolvimento entre Gregório e a esposa do tenente Florentino, Guiomar. Essa foi a forma que o senhor encontrou para justificar para o leitor a crueldade no destino de Gregório?

Eneas Barros: Faz parte da trama. Como eu lhe disse, ao conversar com pessoas a gente acaba ouvindo muitas histórias, fofocas, disse-me-disse. Nada fica comprovado, mesmo porque a própria Guiomar nega qualquer desconfiança do tenente. Esse caso fica por conta da imaginação do leitor.

Dílson Lages: Quais as alegrias de ter escrito e editado Parabélum?

Eneas Barros: Muitas. O mais gratificante é o fato de que diversas pessoas já me procuraram para dizer que gostaram muito do romance, da forma como prende a leitura. Isso é gratificante e me estimula. Em meados de Dezembro, por exemplo, estarei lançando “O Turco e o Cinzelador”, sobre uma história de amor e suspense que envolve a construção das portas da igreja de São Benedito. O romance tem a capa de João de Deus Netto e apresentação do professor Fonseca Neto. São essas reações positivas, essas respostas estimulantes que nos animam a prosseguir.

 

Sobre o entrevistado:

Eneas Barros é GERENTE DE MARKETING da rede Favorito de restaurantes, pesquisador e escritor, já tendo escrito Piauí, Terra Querida; Em verdade vos digo; Parabélum; Macauã; e O turco e o cinzelador (no prelo).