O amor, o cinema, a revolução
Por Bráulio Tavares Em: 10/06/2018, às 15H01
[Bráulio Tavares]
Nem tudo que diz respeito aos anos 1960 pode ser carimbado com a fórmula “sexo, drogas e rock-and-roll”.
O livro de memórias de Anne Wiazemsky, Um Ano Depois (Ed. Todavia, 2018, trad. Julia de Rosa Simões) poderia se chamar O amor, o cinema e a revolução, porque era mais ou menos este o lema em vigor na época que ela viveu tão de perto e descreve tão bem.
Anne foi casada com Jean-Luc Godard e aparece nos seus filmes A Chinesa, Week End, One Plus One, além do Teorema (1968) de Pier Paolo Pasolini e A Grande Testemunha (1966) de Robert Bresson. Era uma atriz discreta, mas muito fotogênica, e correspondia (tal como Anna Karina, a esposa-musa anterior de Godard) ao tipo mediano das garotas daquele tempo.
Alguém dirá que nem todas as garotas daquele tempo eram tão bonitas; mas atrizes como estas duas reproduzem modos de andar, de vestir, de sentar, de discutir, de dançar, de cantar, nos quais rapazes e moças se reconheciam sem esforço. Essas atrizes de cinema que a gente chama de “musas de uma geração” nem sempre são bonitas. Elas são um conjunto de atitudes, inflexões de voz, movimentos, olhares, que dão a sensação imediata de uma verdade de dentro para fora.
Anna Wiazemsky relata as agitações de 1968 com o olho de quem, quando deu fé, estava no centro do furacão, coitada. E ao lado de Godard, no ano crucial da vida do diretor – quando este parou de fazer filmes sobre garotas como ela e começou a fazer filmes de esquerdismo militante e radical. Com quase 40 anos, Godard estava se fascinando cada vez mais com o ardor combativo dos jovens radicais do movimento estudantil.
Era principalmente Jean-Jock quem falava, os silêncios de Jean-Luc me surpreendiam: ficar calado na presença de outra pessoa não era um dos seus hábitos, ele sempre precisava ter a última palavra. (p. 21)
Há um episódio pitoresco logo no início, quando Godard é convidado para dirigir o filme O Assassinato de Trotsky tendo John Lennon no papel-título. Ele e Anne viajam a Londres, se reúnem com os Beatles na Apple, mas os “santos” de Godard e Lennon não se harmonizam em momento algum (o que não é de admirar), e a reunião termina com Paul McCartney convidando Anne para tomar chá embaixo da mesa.
O projeto não foi à frente; mas como Godard já estava em Londres, com um pré-contrato assinado, acabou aceitando dirigir os Rolling Stones em One Plus One, que não passa de uma longa maratona de ensaios da canção “Sympathy for the Devil”, intercalado com discursos marxistas-leninistas.
No pinga-fogo das passeatas estudantis, com as ruas de Paris sendo desparalelepipedadas pelos estudantes para combater a polícia, a cidade parou. Diz Anne: “em pouco tempo os estoques de rádios de pilha pela primeira vez se esgotaram no país”. Godard vai para as passeatas cheio de perplexidade e entusiasmo, tropeça, quebra os óculos...
O bom de livros assim é trazer esses olimpianos (como os chamava Edgar Morin) ao plano banal e nada heróico de nós mesmos. É romântico, mas também dá um certo consolo financeiro, saber que de manhã Godard levava para Anne uma bandeja com “uma xícara de Nescafé e um pão com manteiga”. E lendo relatos do dia a dia de pessoas tão famosas (aparecem Bernardo Bertolucci, Gilles Deleuze, Pier Paolo Pasolini, etc.) a gente vê como o pessoal daquele tempo vivia modestamente. Comparados a eles, nós brasileiros de hoje somos uns xeiques sauditas.
Maio 1968 ficou de certa forma como um modelo de estudo para manifestações de rua por muito tempo. Não há como não reconhecer Junho 2013 em trechos como:
Às vezes, exaustos, parávamos num café para descansar ou beber alguma coisa. Todos os cafés estavam abertos, nenhuma porta fechada. Os comerciantes e moradores do bairro se diziam indignados com a violência policial e não deixavam de ajudar os jovens que buscavam abrigo. (p. 35)
Os confrontos tinham começado sem que ninguém soubesse por quem. Os estudantes acusavam as forças de segurança, que por sua vez acusavam os estudantes. Pela primeira vez, ouvimos falar em “elementos incontroláveis” que teriam se infiltrado na passeata para semear a discórdia. Estudantes entrevistados falavam em “provocadores manipulados pela polícia”. (p. 44)
Somente alguns estudantes, que ele julgava pertenceram à UNEF e que portavam megafones, pediam sem cessar: “Voltem para casa, não se deixem manipular... A manifestação de luto terminou há muito tempo... Voltem para suas casas.” (...) Um grupo de uma centena de jovens, rostos cobertos por lenços, muitas vezes com capacetes e armados de coquetéis Molotov, lhe parecia particularmente perigoso porque estava visivelmente determinado a lutar. (p. 116)
Não é um livro de análises, é um livro de lembranças e comentários. Engana-se quem pensa que Jean-Luc Godard era diferente de qualquer um de nós no que diz respeito à comédia conjugal. Anne Wiazemsky tinha 21 anos então, Jean-Luc tinha 37 e além do mais era o que o pessoal chama “uma lenda viva”, “uma pessoa pública, um oráculo, uma estrela, uma espécie de deus” (p. 114)
O que não o impedia de, no dia seguinte a um bate-boca feroz com Anne, pedir desculpas nestes termos: “Lamento o que disse antes, falei sem pensar, e, se você acreditou, é uma imbecil.”
Um livro de memórias é sempre um livro onde o autor demonstra que quem tinha razão era ele. O livro de Anne Wiazemsky é uma série de flashes breves na vida de uma garota que, por caminhos de família e de profissão, estava no epicentro da crise ideológica de sua época. Muita tinta filosófica e política já correu sobre Maio 1968, mas a tinta de Anne, se não traz nenhum “raio ordenador” sobre aquela balbúrdia, relata com clareza o que era estar no meio dela.