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VINTE E TRES: FIM.

 

 

ANOS depois, eleito Antônio Ferreira para o Governo, e tendo sido feita a aliança com Abraão Gadelha, Benito Botelho estava realmente desempregado.

Vejo-o no Bacurau bebendo o último dinheiro ganho com um discurso para o Deputado Fonseca Varella. Benito bebia o discurso ouvindo falar o regatão Saraiva Marques que estava ali em companhia de um bigodinho baixo, feio, magro, o Maneco Rastos, filho de Conchita del Carmen.

Maneco dizia, entretanto, que seu pai fora o ilustre filho de Pierre Bataillon. Maneco bebia muito, estava endividado no Bacurau, que perdia fiado. Aquele era o lugar predileto porque tinha a erudição do mestre Benito.

Mas Benito estava em decadência, e Maneco não o podia valer. Benito Botelho bebia cada vez mais, ficara sem a tia, estava mais magro, mais pálido e mais trêmulo. Caía na rua e perdera o antigo brilho. Bêbado, já não dizia nada coerente, parado, inerte.

Entâo o regatão Saraiva Marques assim falou:

- Sabem o que aconteceu com Zequinha Bataillon?

Benito Botelho, que estava muito bêbado, ergueu a cabeça, olhou para o velho, mas não o pôde ver.

- Depois de dez anos desaparecido, reapareceu na praia do Cuco onde tinha sumido: Estava louco. Maria Caxinauá o encontrou e o escondeu durante anos. Um dia, ele piorou e ela teve de amarrá-lo. Ele ainda sobreviveu assim, amarrado, por alguns anos. Quando morreu, ela o enterrou às margens do Igarapé do Inferno...

Mas aquilo que parecia uma estória era a verdade. Saraiva se calara. Fez-se um silêncio. Era a Morte.

Então Benito se ergueu a custo e começou a recitar um poema de Álvaro Maia, chamado Noite.

 

A noite é fomidanda. Exsurgem atros abismos. ...

 

Benito recitava de côr. A sonoridade das frases ecoava no ambiente. Homem sensível, Maneco se impressionava com aqueles versos que conhecia bem. As palavras saíam da boca alcoolizada com troar de tempestade.

Uma prostituta nova entrou no Bacurau e sentou-se à mesa onde havia restos de comida. Um gato se lambia sobre o balcão e a fumaça dos cigarros o envolveu. A voz empostada de Benito bêbado continuou:

 

Na lúgubre eclosão das tragédias eternas ...

 

Naquela manhã Abraão Gadelha fora ferido a firo por um desconhecido que se imaginava a mando de seu ex-correligionário Ribamar de Souza. Toda a cidade falara disso, mas o tiro agora estava esquecido no Bacurau. Gadelha sobreviveu.

 

No solene silêncio há mandingas e ritos ...

Vêem-se, na confusão de vidas e detritos,

Consolações de Deus, ódios de Satanás.

 

Benito era um homem liquidado. Tinha tido uma pancreatite e não podia continuar bebendo.

Seus dedos se agitavam no ar, e ele já nada via.

Algo morria.

FOI quando entrou, altaneiro, atlético, o poeta Lopes, que assinava Aflopes. Era um rapaz forte, simpático e talentoso.

- O Lopes! - gritou Maneco ao vê-lo. Aproxime-se do Ágora.

 

Como horroriza o luar! como é tão triste o seu brilho!

 

 

Lopes esperou que o poema chegasse ao fim. Benito esquecia versos, confundia estrofes.

Quando o Mestre acabou, o poeta Lopes falou:

- Sou portador de uma triste notícia

Silêncio.

- Sabem quem acaba de morrer?

O gato pulou do balcão.

- Frei Lothar.

 

 

PISCANDO, sobranceiro, enevoado, pesado de álcool, olhos fechados, Benito ergueu-se da cadeira e ficou um instante assim, de pé, sem ver ninguém, imóvel.

Depois abriu os olhos parados e disse, apoiando-se na mesa:

- Senhores... Meus senhores... Acaba de falecer um dos maiores homens que esta terra conheceu... Frei Lothar consumiu toda sua longa vida no árduo trabalho de lutar contra a miséria, contra as doenças, contra a ignorância amazonense...

Não continuou, pois caiu sobre a mesa, rebentando em pedaços um copo de aguardente no chão. Morreu cinco dias depois e está sepultado sob uma lápide de cimento sem nome no cemitério da Major Gabriel. Alguns anos depois Ribamar de Souza e Diana Dartigues estavam separados. Mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha estória, pois o dia se anuncia e ressurge e é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto a despeito desse vosso Narrador fingido que está no fim, permanecendo vivo ainda até esta hora e o assunto está terminado. Não mais, que foi assim que falei, e assim a estória se fez e falou por mim, e se cumpriram as coisas conforme o disse eu, o Narrador. Adeus, meu filho: lembre-se desse vosso Narrador que já não estará vivo e não se esqueça dessa estória tão bonita do amante das amazonas. A Amazônia é um certo lugar fantástico que também está no fim, mas quando sonhar sonhe com o Igarapé do Inferno se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, do bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênia Vellarde. Não se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da Conchita dei Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. Mais de Frei Lothar e de Ribamar de Souza, que assim se vai nesse vosso Narrador que desaparece, neste ponto.