O dia está nascendo. Há uma cena na varanda, algo se representa lá. Pierre Bataillon e Ifigênia Vellarde, juntos. A mesa servida por Ivete, jovem. Estou no cais, trazido pela correnteza. Entorpecido, meu corpo quase morto, toco os degraus da escada, não os sinto. Não me vêem, mas os vejo. Ali está o rei, o construtor do império amazônico, de látex, de terra e esperma, que tudo construiu com centenas de homens, operários e seringueiros. Apareço trazido pelas águas, como Moisés do Egito. Flashes fracos, aparecem e desaparecem. A imagem de meu irmão morto se projeta e se apaga em minha mente. Mas não dói. É imagem vaga, frouxa.
Bataillon é homem mais baixo e magro do que eu pensava. Bem vestido, empertigado, gestos largos, modos aprumados, nervosos, uma dignidade, uma cortesia à antiga. Nariz aquilino. Cabelos finos. Bigodinho negro. A cabeça levantada, nobre, tem aura. A gravata borboleta, o paletó de linho branco, abas e calças largas, sapatos de verniz. Parece suportar, nas costas retas, as barbatanas retiformes de um manequim retígrado, que tudo vê, tudo olha. O gesto, o olhar com que, altaneiro, superior, soberbo, se dirige aos demais, soberanamente, por concessão real. Atrapalha. Representa. Apesar da estatura baixa, é como se olhasse de cima, de um patamar superior. Sim. Há polidez e dignidade, ali. Ouço-o falar um português erudito, postiço, livresco, clássico e impostado, mas fluente. Pego pedaços de falas ... deu à luz a um filho chamado ... ficou convencionado que ... O terno branco brilha. Bem talhado. Camisa de seda, suspensórios, colete, um John Bull de ouro maciço atravessado, preso por uma corrente de aros duplos, pesada, platina e ouro. Ele é um homem de vitrine, de museu, arrumado. Na cintura há um Smith de níquel e prata, cabo de marfim. Dizem que ele atira bem, como um militar, que coleciona armas, revólveres, carabinas, arcabuzes que entulham a Sala de Armas da sua tropa de choque.
NÃO sei por que Pierre Bataillon quis que eu ficasse, trabalhasse com ele. Gostou de mim.
Mas agora sai do portaló do Comendador uma visita. É um jovem advogado, etiqueta profissional recém-revelada na cidade de Manaus. O Comendador é belo navio, comprido barco branco. Pertence ao rico Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha, pai da Glorinha, ou Maria da Glória, a Lambisgóia, mulher do jovem advogado que chega. O Comendador, muito branco, contrasta com as várias tonalidades do verde e do azul ao redor, do verde-musgo craquelê, dos cipós-de-cobra, do esmeralda, ao cobalto das águas, à cobertura azul do céu. O advogado sai rindo do portaló. Chama-se Antônio Ferreira. É agente e sucessor dos negócios do riquíssimo velho. Parece um menino. Meninão branco, mãos delicadamente tratadas, cabelos anelados, negros, caindo aos cachos sobre os aros de ouro dos óculos. Terno de cambraia, chapéu Panamá, sapatos de bico fino, pretos. Um dândi. O sol bate e nele se vê as formas de um corpo forte por baixo da fazenda fina, as pernas grossas, as nádegas cheias. Os olhos brilham, fuzilam de jovialidade, explodem de alegre e enérgica fantasia, sublinhada por permanente sorriso adolescente, ingenuidade e malícia, inscrita nos lábios sensuais. Criança carente. Cara de menino, de bandido, de assassino. Simpático, educado, sociável, exibido. Ferreira foi o maior propagandista de si. Não eram as mulheres o que ele deveras amava, mas a Glorinha, e todos o fazem por diversos modos a seu dispor. Suas ambições nela se concentravam. E apesar de filho de uma família de classe média humilde, foi erguido ao podium, casou-se com a Lambisgóia, ou melhor, com a mais sólida fortuna da terra, que o jovem soube como ninguém se fazer amar pelo sogro, que viu nele a personificação da inteligência, lealdade, do valor, que o igual entende o igual, e quanto mais corrupto mais leal ao tipo de capitalismo ali praticado, na época, e o velho o amou durante toda a vida, como a um filho, mesmo depois que ele se separou da filha, conforme vai-se ver. Glorinha alta, magra, enfiada, esquelética, pálida, dentuça, nariguda, feiticeira, ossuda, ilustração de livro infantil. Quase imbecil. Na noite de núpcias fugiu, com alarde e escândalo, do noivo - o que denunciava sua posterior alienação - chorando, para a casa dos pais, como medo assustada, em pânico, crise nervosa.
Até a palavra era censurada naquela casa, em que se testemunhavam cegonhas com encantadores bebês nas fantasias dos sonhos de uma menina trancada, imbecilizada, deformada por um pai feroz, que nem as vizinhanças da rua podia espreitar, para acontecimento trivial, que tudo era, que tudo tinha de ser escondido da Glorinha, criada como um monstro, só saindo em coorte dentro do carro fechado e afofada em algodões e babados de purificadas, aniladas, assépticas saias brancas de uma legião de solteironas tias e da recatada, severa, vigilante mãe, D. Martha, que tudo via, que tudo queria saber, até da direção do olhar. Escondida nos cantos e pontos da casa, nervosa e abalada, abatida, pálida, não aparecia nunca, com medo de tudo, não freqüentava ninguém, embutida nos seus temores até o seu triste fim. Meu Deus! Quando alguém chegava, ela se recolhia, alegava enxaqueca. Nas raras vezes que ficou na sala, restava sentada, calada, curva, sem nada dizer, olhava apalermada para todos, concordava com tudo que se dissesse, sorria vagamente, longinquamente. Glorinha não falou, não brincou, não odiou. Toda a sua subjetividade passiva, medo, terror, obediência, silêncio. Exemplo da educação manauara, fala-se que ficou virgem até o fim, que Ferreira não a violentou. Ele, talvez, a amasse. Ela era o patrimônio vivo da imensa fortuna, da influência, do poder político do pai, poder crescente, dono da classe política, grande líder, cacique, cruel assassino, corrupto, corruptor daquela época de esplendor e glória do ouro da borracha amazonense.
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