Rogel Samuel: O amante das amazonas, 8

Mas já no cais Paxiúba se chegava perigosamente pela frente, olhar fixo na pilhagem, e perto do fosso da malícia de onça de ódio e bondade, armada e imediata, Zilda recuava, polarizada, armas na preservação da defesa de sua integridade contra a direção reta daquele olho corruptor. Ela esperava que Paxiúba não avançasse, que a excluísse de algum mal, pois desde aquela época ele era personalidade do Palácio, chefe do aparelho policial do Seringal, guarda de Zequinha Bataillon, diziam amigo que dormia com o menino, importância capital de bicho. Sendo que Paxiúba, armado assassino, águia e serpente, eliminava quem devia de ser, na sua função de coagir e de matar. Pois a cínica face, perversa e úmida, pegada nela, possuindo algo que pulsava nele, lambendo-se. Oh, aquilo ocorria quando ela estava só, e nas horas de tráfego solitário. Paxiúba, pistoleiro do rei. Bastava olhar, soldado policial, que ia cobrar algo, investigar, abatê-la e acuá-la, sub-reptício, excessivo, cínico, obsedante, poderoso, provocante, pornográfico, hipnótico. Perigo maior: olhava-a! Significava que via, que sabia dela, impotente contra aquele saber devastador, violentada, psicologicamente invadida e estuprada. Dissera para o marido? Não, nada dissera, prevenindo da morte o Laurie Costa, seu único bem. Ela o amava, boníssimo. Mas não tivera filhos, não pudera. E mais: Nunca sentira nada com ele. Servia ao marido. Só mulher à-toa devia de sentir orgasmo. Seria morta por Laurie se gemesse, se tivesse o Gozo. Com regularidade Laurie a cobria, vestido e separado, tentando fecundá-la. O filho seria o cimento da harmonia familiar. Ainda menina se casou, orientada pela Madrinha Rita, das melhores famílias da Vila da Serra da Mernoca, no Ceará; depois de prolongado namoro consentido. E foram-se para o Roçado de Dentro, mas a Madrinha Rita morreu, veio a crise, tiveram de vir, banidos, para o Amazonas. Laurie sempre no sério, no correto. Agora a paz infiltrada de cumaru. Nos últimos dias perturbara-se, bastando ser olhada por aquele animal para passar mal. Nas instâncias da semana a coisa se agravara. Paxiúba demonstrando certas amabilidades, cortesias, com embargamento de voz que afinal o monstro ainda era uma criança. E Zilda odiando porque ele era macho, e lia naqueles olhos o que ele estava querendo, esperando, o que suplicava e o que dizia, a saber: “Vou te esperar. Vais ficar comigo, um dia desses”.

A casa de Zilda era um tapiri de um cômodo, chão de tabatinga batida, paredes e portas de paxiúba, com duas portas: uma que se abria sobre o igarapé, que passava embaixo; outra que se abria para a floresta em frente, onde ficava a caixa de cheiro sobre quatro paus. O cachorro tinha morrido, picado de cobra, deixando-a mais só. Da cozinha, que ficava na porta do mato, vinha o cheiro de feijão, no fogo. Mas Paxiúba tinha-se aproximado dela, o cheiro de cumaru sobre ela. Agora ele tinha um presente, um tucunaré grande, na palma espalmada, quase vivo. Paxiúba foi o maior pescador de Amazônia, por feitiço, olho de cobra, das hipnóticas e horrorosas. E Zilda pelo tucunaré quase feliz sentia aumentar seu ódio, que nascia brutalmente. Era a primeira vez que odiava alguém, por isso se persignava, arrependida. Perto do rapaz sentia-se nauseada, contraia a boca de enojo, de enjôo de coisa nojenta, gosmosa, de grossa goma como o látex, a boca se enchendo de cuspe, que cuspia quando o rapaz chegava nela, o que estranhamente para o bugre parecia satisfeito, como se ela cuspisse de amor. Ela, porém, nunca o olhava direto, temesse vê-lo, colhida pelo olhar medroso seu no seu desejo, de modo a não receber de frente e ver algo ameaçador. Mas vinha ficando assim, nos últimos dias um tanto lesa, de bestialógica leseira, tonteira de feitiço e de azar no sorriso dos lábios do bugre nela, paralisada sem forças, anestesiada sem armas, inútil apesar da cara feia e do beicinho que conseguia fazer na força de ter, no delírio - pois aquilo era um delírio - que tonta mergulhava num reflexo nulo que contra si, que no fundo começava a ter, a despertar, certa irresponsabilidade e atração, no lastro de desconhecida loucura e de inusitado cheiro, que do corpo dela se exalava, assim como se tudo o que o rapaz representava para ela a contaminasse, qual seja, a força do poder do Palácio Manixi, o esplendor e a riqueza do Seringal, na sua orgia de luxo carismático - Paxiúba, irmão de Zequinha, filho de D. Ifigênia, sua patroa, e tudo aquilo ressoava nos seus sonhos antagônicos, em tudo avesso e o Outro de sua vida, ingrata e destruída, sem tido tino e agora sem destino, ali, desvalida, perdida, vadia, no Amazonas, dos mais longes mundos, e sabia bem que do corpo do bugre, principalmente do tórax largo e de seus bonitos ombros se exalava o calor do poder dos Bataillons, como se fosse ele o firme e forte ferro da potestade e da glória do capital, cheiro esse, de cumaru vertido, sabendo a azeite, contaminada, também em si sentia, como odor do amor, mel do corpo do amor insabido no meio do sabão da pele.

Então o que se passou foi o seguinte: que Zilda, não o podendo rejeitar, recolheu o peixe da palma daquela mão, sem a tocar e agradecimentos, e se levantou da trempe com decisão, deixando ali a roupa nos seus sabões e se foi, reta e depressa, e em casa destampou a bilha e bebeu um caneco de água de canto, que sufocava - mas foi quando viu, em pânico, ali e demonstrando-se, aquele macho já na casa dela, sem que pudesse reagir, que passava mal, enovelada, palerma, segurando-a com firmeza pelos pulsos daquelas mãos enormes, quentes, já deixando inteira, que quando ela resolveu gritar o grito não saiu, e desmaiou ela no momento em que se enlaçava com ele, indefesa, bêbada, boba, lavada e enjoada, sufocando... Oh!, dor das dores! Oh!, derrota das derrotas! Ai, ai, ai, fraqueza da humana condição. Que: “calminha!” lhe ia dizendo o bugre com doce voz... “Seja boazinha”, lhe suplicava, sussurrando muito baixo, no seu ouvido, acrescentando: “Quietinha, meu amor”. Demônios!, que embaladora era aquela voz meiga e dócil, pela vítima, horrorosamente dócil!, ela sangrando por dentro, desigual, contra monstro de tão múltiplas iniciativas e recursos que encontrava dentro de si um demônio traidor, do inimigo aliado, no escuro escondido, vendo ela quão inútil era reagir, se debater, vaga, o inimigo se impregnando, na contração maior das forças desconexas. O grito foi rápido e terrível. Poderia ter sido ouvido no Palácio Manixi se por lá tivesse sido ouvido. Era como se estivesse ela sendo engolida viva. Era o grito do oprimido, do desespero, do horror do encontro das forças inimigas...

NO dia seguinte o marido de Zilda estava morto, o fígado transpassado por uma flecha.

Pois, depois que Paxiúba foi-se embora e lhe dizendo “obrigado, meu amor”, ficou ela estendida no chão e nunca iria terminar quando uma penca de banana colhida além do risco dos limites dos Numas e de seus sinais marcados nas sombras das margens do Igarapé do Inferno - o marido lhe trazia da estrada, e bem ali, cozido, perfumado e preparado em salsas o tucunaré de ervas finas belo peixe, rei da Amazônia.

Que mais? Por quê? Pois, no inesperado do dia seguinte, quando nem tinha podido ver de onde partira, e porque o marido quebrara a lei e rasgara o véu do limite, foi assassinado de súbito no limite que a Amazônia determina sobre as direções, para a direita e para a esquerda, limites dos Numas que ali estavam e que avançavam, encontrando em tudo a origem, e em todas partes realizando o curso de sua trama de nós que nada revelavam de si e a si mesmos se sustentando em veios de sangue que a cobriam, à Amazônia, na sua troca, na sua volta, na sua de tudo não sabendo a grandeza. O corpo foi jogado em frente do Palácio, como um aviso. E naqueles mesmos dias ocorreram grandes fatos em outros lugares e horas, históricos e decisivos para a sucessão desta ficção e que relatar irei no momento oportuno mas que para tanto ainda tenho de revelar as surpresas de muitos outros ocorridos.

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