Rogel Samuel: O amante das amazonas, 5

TRÊS: NUMAS.

Com os Numas não.

Arredios, móveis, vigilantes, foragidos dos Andes, empurrados por perigoso inverno, permaneceram perdidos e livres, animais persistentes, se impuseram como resistência. Não e não. Reagiram ao pacto, ao toque, ao contato. Onde há resistência, há poder? Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiaram-se em si. Na multiplicidade de seus pontos de força, insistindo em ser, no imprevisível espaço. Estão, a princípio, em toda a parte, na exterioridade do poder do Seringal, na rede florestal de fora da dominação. Os Numas cercaram o Seringal, restringindo-o a seus próprios limites, impedindo sua expansão desmesurada. O Seringal, imenso (viajava-se dias dentro dele), teve de estacar, deter-se, refluir, limitado por aquela invisibilidade, de saber, de encontrar, como se não existissem senão pelo vazio de sua ausência inumerável, recobertos, em nenhum lugar, no não-traçado. Freqüentemente se assemelhavam às árvores e aos pássaros do céu. Eles não eram aparência, mas imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambigüidade onde tudo é incerteza e não-saber, herméticos, multiplicados e fortes. Os Numas, sem revolta, sem rebelião, sem guerrilha, rio acima, possíveis mas improváveis, mitificados, solidários, violentos, irreconciliáveis. Sempre prontos ao ataque que não se dava. Fadados a matar. Pois os Numas apavoravam. Eram pontos estratégicos desconhecidos na correlação de poder da natureza, de que os Numas eram guardiães. Distribuíam-se de modo incompreensível e irregular, em focos de força (diziam que eram capazes de sobreviver embaixo da água em certas bolsas de ar). Disseminavam-se com maior densidade no espaço da noite, preparavam armadilhas nos caminhos de pequenas cobras venenosas. Oh, ruturas! Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas, deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas. Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas. Às vezes deixavam-se entrever. Muitos seringueiros tentaram caçá-los a tiros (e foram mortos dias ou meses depois, numa vingança fria e exata). Eles se deslocavam rápidos, como um sopro, não estão lá, transitórios. E rompiam além, na nossa frente. Nus, com gemido de fera ferida, de pássaro. Só som. Para se re-agrupar nos caminhos já passados, deixando propositais pegadas. Recortam o ar com sibilante fechas de vento, marcando seus traços em toda a parte, nas irredutíveis casas do nosso medo. Cruzam redes de relação dentro do Seringal, infiltrados, atravessando, chegando no jardim do Palácio, para afrontar. Eles estão lá, sem estar. Ágil nomadia perigosa. São homens nus, de enormes falos escuros. Alguns meses sumiam, desapareciam, pulverizados, sem unidades individuais, se acalmavam, tivessem ido embora para sempre. Ou só vento, integrados nas folhas das árvores. Mas logo uma seta rápida entrelaça no ar a sua curva a dizer que nunca se foram, que sempre lá estiveram, belos, os olhos amendoados e escuros, grossos sexos expostos, corpos de criança graúda. De certa forma, delicados. Mas puros fantasmas, encantavam-se, a floresta pré-histórica os neutralizava, floresta de ouro, de leite. Bataillon avançara na parte mais secreta da floresta, igarapé acima. Agora costeava os limites imprecisos da morte. Entre a tropa de guerra e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas. Pierre deixava presentes, miçangas, facas e frutas, em bandejas de madeira. Os Numas nunca tocavam naquilo. Entre o Seringal e os Numas não havia canal. O Seringal, à espera. Os Numas, na observação, proscrevendo limites que quebravam. Pierre evitava a guerra, buscava a solução política, economizava-se, agia conforme a natureza de seu princípio único, sem o risco de pagar pelo preço elevado da morte.

Aquele homem magro, baixo (teria 1,50m de altura), cotidianamente elegante, empertigado, ereto, a cabeça levantada disfarçava a pequena estatura, bigodinho à Carlitos, com quem se parecia, altivo, mas sem ridículo, altaneiro, nobre, neto do Duque de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma, inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas, sempre com a mulher, D. Ifigênia Vellarde, católica, filha bastarda do nobre D. Angel Vellarde, mulher amante da Amazônia e do seu luxo selvagem, doceira, bordadeira, nos seus elegantes e simples vestidos de seda rosa cálido, com os dois grandes diamantes como grossas lágrimas caindo dos lóbulos das orelhas quais espantosos sóis - cuja ascendência foi usada pelo marido nas alianças e pactos durante a Guerra do Acre, quando Pierre fez o hábil jogo de duplicidade com brasileiros e bolivianos, ficando em paz com os dois e dos dois tirando igual proveito, principalmente valendo-se do fato de estar ele protegido da guerra por uma inatravessável massa de 400 km de floresta, de pântanos e de flores - sim, era impossível conceber, fazia eu, como aquele fidalgo engastado na floresta, cercado de todo o luxo parisiense e de seus muitos livros - os clássicos, Schopenhauer, Rousseau - como Conquistador da Amazônia, do vasto império de látex (- “Assim é o látex”, dizia ele - “elástico como o caráter. E é por isso que sai daquelas árvores como coisa fundamental e gomosa, como os líquidos viscosos sob a casca do corpo, o pus, o plasma aquoso branco, a goma, a seiva selvagem do muco que faz sangrar a floresta pegajosamente - é assim a seringa: o sangue da Amazônia que colhemos como um estranho mal e que um dia teremos de pagar muito caro”) - sim, aquele homem não se desorganizava moralmente nos seus abismos e nos seus extremos em transformar-se e sitiar-se o Seringal num campo de concentração durante a dominação Numa.

Não, agudissimamente obsedado, Pierre Bataillon herdara restos espirituais da monarquia de grandes reis, admirado por nações, ou obra-prima da literatura - como se esperasse o óbvio: que logo os Numas viriam prostrar-se e reverenciar o seu supremo caráter e estilo - as insólitas reações daquele homem, ser qualitativo, fora da indistinta massa humana, pertencente ao número dos que representam algo excepcional, que ilustram o nome com a imagem interna do uso de si, ligando-se à metafísica de uma criação de um super-homem singular e inscrito na atmosfera do fantástico cotidiano.