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VINTE E DOIS: JORNAL.

 

 

DURANTE algum tempo Benito Botelho parou na casa de Abraão Gadelha sem se animar a entrar, na Rua Joaquim Nabuco, 32. Dois andares, estilo mourisco.

Pressentia que estava desempregado. Alguns anos atrás não se importava, mas a situação agora era outra. Tia Eudócia estava velha, doente, não se levantava da rede. Ele tinha de providenciar algum dinheiro para cuidar dela, pagar uma cabocla e em Manaus as oportunidades agora eram raras.

Surpreendentemente Gadelha o recebeu amável e o convidou para jantar.

Gadelha antevia a derrota nas umas. Faltava um mês para as eleições e Antônio Ferreira levava vantagem sobre ele. Ferreira era mais ágil, mais forte fisicamente, mais simpático e só fazia política, não trabalhava noutra coisa. Ao contrário, Gadelha raramente estava em Manaus, ocupado no Rio de Janeiro, onde morava. Antônio Ferreira era um político profissional, Abraão Gadelha era um jornalista e empresário e o prestígio de seu padrinho Vargas entrava em declínio.

Mas Gadelha formaria uma aliança com Antônio Ferreira nos primeiros anos. Como o Estado do Amazonas não tinha saído da situação pré-falimentar em que ficara desde o fim do império da borracha, seria impossível que Ferreira fizesse um bom governo e por isso no fim Gadelha romperia com ele, acusando-o de corrupto e irresponsável e assumiria de novo o poder, elegendo Ribamar de Souza seu candidato.

Ribamar de Souza, entretanto, estava eleito para o Senado.

Abraão Gadelha contava com Benito Botelho para escrever matéria pesada contra o governo por vir. Benito escreveria artigos assinados, polêmicos, pondo muita lenha na fogueira, como só ele sabia fazer. Enquanto isso, Gadelha iria para o Rio. Quando as coisas amainassem, voltaria para Manaus, demitiria Benito Botelho e faria a aliança com o novo Governador. Sabia que só Benito teria a coragem para o ataque direto. Benito figurava nos seus planos. Benito nada tinha a perder. Já tinha a cabeça a prêmio há tempos.

O almoço era simples. Comiam numa mesa ampla, posta pela metade com a toalha dobrada. Gadelha vivia só, longe da família. Feijão com arroz, peixe frito e cozido, farofa de banana.

- E então? - perguntou o patrão, de repente, o garfo na mão. Nada descobriu?

Benito Botelho bebeu um gole de cerveja antes de responder. Sentia-se culpado pela derrota do partido.

- Nada - disse. Mas ... encontrei algo que não procurava.

- Sério? Pelo menos que nos dê boa matéria e compense o dinheirão perdido. Conte-me.

- É algo impublicável, infelizmente - disse Benito.

- Então melhor do que eu pensava.

- Escute, Gadelha: Vamos por partes ... Você conhece a estória daquela índia Caxinauá?

- Quem?

- Eu lhe contei, Gadelha. Foi criada no Manixi, com Zequinha Bataillon. Foi sua ama.

- Sim, me lembro - disse Gadelha.

- Acontece, Gadelha, que Maria Caxinauá está viva e é avó de Diana Dartigues...

 

Gadelha se engasgou.

Gadelha tossia, muito vermelho. Bebeu um gole da cerveja.

 

 

GADELHA não se refez facilmente. Então o poderoso Ribamar de Souza, seu aliado que tinha vindo do nada, do povoado de Patos em Pernambuco, de onde partiu com duas mudas de roupa na mala, amarrada, costurada, revelava seu segredo? A cabeça de Gadelha trabalhava numa velocidade espantosa. Porque Diana Dartigues era um mistério para todos. Ninguém sabia da origem da fortuna do casal. O dinheiro apareceu como por encanto.

As crônicas sociais alimentavam o mito - Diana Dartigues. O Ricardinho Soares dizia: “Diana é divina”. Ela era citada como uma das mulheres mais elegantes do Brasil, na coluna do Ibrahim Sued, do Rio de Janeiro. Magra, alta, elegante e sensual, ninguém lhe negava o lugar que sempre ocupou, na mais avançada moda do seu tempo. Seu andar, sua maneira de jogar os braços para frente, o jeito de torcer o pescoço comprido, garça pernalta, gestos estudados, manequim francês. Diana não andava - desfilava. Sempre com vestidos claros, ressaltando a tez morena, sempre com sapatos altos. Quase não usava jóias, sempre na medida certa - pequeno broche, ou um único anel no dedo, um colar de pérolas. E só. Às vezes, uma fitinha no pescoço, com um rubi.

Era belo assistir ao casal Ribamar-Diana saindo daquele Buick preto com chofer. Ribamar, bem mais velho, tipo de empresário, sorrindo para todos. E Diana, de chapéu, leve sorriso, digna, alta, magra, aristocrática, um pé, outro pé, jovem, braços levantados para frente, ou jogados para frente com displicência, quadris meio tortos, mas sem exagero.

O belo casal. Mesmo os adversários a respeitavam e temiam.

 

 

- MAS isso não é tudo - continuou Benito.

- Como você descobriu essas coisas? - perguntou Gadelha.

- Uma índia, chamada Irini, me contou. Foi ela quem criou a menina. Foi ela quem a trouxe para Manaus... estive com ela.

- Você ia dizendo...

- Sim. Veja, Gadelha. Juca das Neves estava falido. Quem pagou as dívidas?

- Nunca se soube, disse Gadelha.

- Ela - Diana Dartigues!

Abraão Gadelha olhou o interlocutor descrente, mas Benito continuou:

- Maria Caxinauá, há muitos anos, roubou um cofre de ferro cheio de libras de ouro do velho Pierre Bataillon. Ela escondeu aquilo durante todo aquele tempo, e depois deu as libras para a neta começar a vida...

- Você não acha essa história muito extravagante?

- Acho, e é, disse Benito. Mas é a verdade.

Levantando-se, pois o almoço terminara, foram para o jardim interno. O mosaico português, as paredes envidraçadas, as cadeiras de palhinha. O jardim era um orquidário circular com um tanque no centro, Cattleya Superba, Cattleya Eldorado, feéricas, alucinadamente belas. Sentaram-se no meio das orquídeas, lugar predileto do dono da casa, onde Gadelha recebia os políticos. O ar quente saía por clarabóias do teto. Efeito de estufa úmida, de jardim botânico.

- E a mãe de Diana? - perguntou Gadelha.

- Morreu há muito.

Ficaram em silêncio. Depois Benito falou:

- Sabe quem era o avô de Diana Dartigues?

- Quem?

- Zequinha Bataillon... Diana é neta de Zequinha com a Caxinauá.