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VINTE E UM: O PÓRTICO.

 

 

Via aquática, monótona, através dos verdes meandros da mata submersa, a marcha prosseguia.

Era a segunda expedição de Benito Botelho em busca de informações a respeito do desaparecimento do jovem Bataillon. Há vários dias a paisagem era a mesma. O som do motor, ritmado pela fumaça da chaminé sobre o ar limpo, o calor úmido e a copa das árvores, arriadas pelo sol pesado e fone, o chão liquido filtrado pelos raios através do verde escuro, as minúcias de luzes em redes de cobertura fofa, arriscada, acamada de folhas secas como patê silvestre, pavê molhado, folheado, cremoso, marrom, onde se deitavam flores selvagens - sim, aquilo era o Igarapé do Inferno re-visitado, depois de tanto tempo, invadido, muito além do ponto de onde a expedição anterior tinha chegado. O Igarapé do Inferno, embora fundo - um navio de bom calado podia navegar - era uma armadilha, camuflada, estreita, em que tinham entrado desde o Igarapé Bom Jardim. Uma ilha engastada na foz fechava-o por dentro. Escondia a mata molhada, literária. Um observador de bom olho não o veria, por trás da glorificação daquele esplendor vegetal. A lancha, que se chamava Solar, penetrava-o como lâmina de faca, sincopada e intrusa, comprida, naquele parque aquático de gigantes antigos, insatisfeitos por serem incomodados, dignos, altaneiros. Era o rumo ignoto, inominável, distante, da paragem dos seres mágicos Numas. Dir-se-ia que as estruturas arcaicas do mundo estavam escondidas ali, que lá o mundo terminava, nos seus desconhecidos motivos.

Havia trinta anos ninguém navegava naquelas águas. Benito e seus homens poderiam ter passado pelo furo do Embira, desde Tarauacá. Mas, vindo assim, através do Rio Jordão, a viagem poderia tocar na pele secreta da fera que tinham necessidade de encontrar e surpreender a qualquer momento, depois de qualquer curva, como se aquilo fosse um monstro pré-histórico. A Solar era um lancha típica da Amazônia, oito metros de comprimento, parte central fechada, banco do timoneiro debaixo da cobertura da proa, janelas, beliches, motor de centro, latões de combustível debaixo de bancos sujos de graxa. As voltas eram intermináveis. Benito não se lembrava do lugar onde passara a infância. A região estava abandonada e entregue ao domínio Numa, que baixaram das montanhas peruanas. Centenas de pessoas haviam morrido naquelas matas cheias de seringueiras. Centenas de pessoas atravessadas por dardos venenosos de penas de guará vermelho. Aquilo era o esconderijo final da face da terra a civilizar.

Sentado sobre a escotilha, com o rifle municiado nos joelhos, o pesado Winchester 92, calibre 44, Benito era um homem aparentemente feliz. Criado em biblioteca, complexão frágil, aquela viagem o reanimava, o excitava.

 

 

A carreira política de Abraão Gadelha crescera no Estado Novo. Ele teve apoio de Vargas, e para diminuir a força do adversário tentava descobrir no passado o suposto crime cometido contra Zequinha Bataillon, que teria sido praticado por ordem de Gabriel Gonçalves da Cunha e Antônio Ferreira. As investigações tinham dado em nada, mas não desistia o velho jornalista. Na realidade Gadelha queria, pelo menos, lançar suspeitas a respeito, o que bastaria para denegrir a honradez da corrente adversária - próximas as eleições para Governador, decisivas para consolidar a sua liderança ameaçada. A morte de Zequinha desencadeara uma série de fatos de conseqüências imprevisíveis e vitais para a política amazonense. Gadelha tinha sido o Interventor Federal, e agora candidato pelo voto direto, ao Governo do Estado na chapa que tinha Ribamar de Souza concorrente ao Senado. Como você se lembra, a suplência de Ribamar seria sua própria esposa - Diana Dartigues.

Ribamar era um aliado poderoso de Abraão Gadelha, e os dois - como forças complementares - vinham tentando destruir o ressurgimento da política Gabriel Gonçalves da Cunha e de seu ex-genro.

UM crime daquela época poderia envolver seu nome num episódio obscuro, sangrento e não sabido - era o que pensava Ribamar de Souza, empresário bem sucedido, que representava a modernidade, a industrialização, a entrada do Amazonas no novo tipo de capitalismo não extrativista: Ele tinha uma cadeia de lojas de departamentos que se ramificava em Belém e São Luiz, possuía um hotel no Rio e ainda conservava as casas de mulheres da Rua Frei José dos Inocentes. A investigação prosseguia, segredo jornalístico de Abraão Gadelha. Ribamar fora contrário à idéia - o feitiço poderia voltar-se contra o feiticeiro: Ele, Ribamar, havia sido amigo, na infância, de José Bataillon (e sempre se comentava a obscuridade da origem de sua imensa fortuna). Mas Gadelha queria lançar suspeitas: um crime compensaria a desequilibrada balança da opinião pública.

 

 

NÃO fôra fácil organizar aquela expedição, Benito Botelho não dizia a verdade. Para uns estava a serviço de um empresário paulista, disposto a comprar terras. No Porto-das-Duas-Canoas teve de evitar tocar no assunto para a tripulação, caboclos que não topavam visitar o Igarapé do Inferno e as terras dominadas por índios e abandonadas há anos...

 

 

Súbito, na margem do rio, apareceu uma mulher vestida de verde que dançava na parte elevada do terreno e com o braço erguido sustentava um vaso de onde partia uma seringueira já crescida. O tronco da árvore passava por trás da estátua de mármore agora verde que D. Ifigênia Vellarde tinha trazido da Europa no fim do Século passado.

 

ATRÁS daquela mulher congelada estava - magnífico, supremo, inominável, majestoso - o Palácio Manixi!

 

 

TINHAM chegado ao Manixi.

O choque era alucinante e belo.

Das janelas abertas saíam grossos e longos galhos de árvores frondosas, nascidas por dentro, e assim parecia que o Palácio tinha criado asas e ia começar a voar.

O Palácio se cobrira de uma pátina de beleza extraordinária, de uma vitalidade monumental - estava ali, vivo, lavado, enlouquecido marco de seu tempo.

Era um santuário, dominava o ambiente, um templo antigo, perdido no meio da floresta, de uma outra era. Toda a luz ao redor irradiava dele, de uma civilização de um outro século, de um outro mundo desconhecido, limite vivo do luxo e do esplendor da borracha do fim do Império.

A floresta avançava contra ele, construindo um estranho cerco sobre a moldura e irisação de sua arquitetura antiga coberta de cipós e de galhos de uma folhagem abundante que vinham de dentro dos salões requintados e criavam a aura de um extasiante espetáculo.

 

 

A lancha aportou e Benito desceu e se aproximou da escadaria de mármore. Uma cascavel se recolheu por baixo das pedras soltas da guarnição.

Ali estava todo o passado da Amazônia, sobre os degraus cobertos de folhas secas, sobre o fino e florido gradeado de ferro carcomido e enferrujado.

A porta estava aberta. Do pórtico, Benito viu, no meio do amplo salão, sobre o chão de tábuas corridas cobertas de plantas e a ruir, intacto, nobre, faústico, o reduzido piano de cauda Pleyel de Pierre Bataillon. Era a única peça do aposento, o único móvel que ficara e ali estava, abandonado, fechado, reprimido, sufocado, em silêncio, como após um concerto, quando se apagam as luzes e o teatro fica vazio e despovoado.

 

 

MAS todos os suntuosos fantasmas exsurgiam dali. Toda a História desfiava o seu curso. O tempo ali se congelava, inerme, no meio dos amplos salões, desaparecendo ao longo daqueles mesmos corredores, escorrendo ao longo das paredes pesadas de estuque, lúgubres, de uma decoração barroca. Eram seres invisíveis que despontavam, uma vez mais, arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas, esquálidos, saídos daquele sepulcro do luxo daquele tempo, através daqueles amplos espaços povoados de símbolos, dentro daquela enorme construção de um outro mundo, do fim de um mundo de onde todos tinham fugido, povoado de demônios, culpados, expiando suas culpas mortas.

E à noite desfilavam, ao longo daqueles corredores, através da seriação de janelas e portas, refletindo suas sucessivas silhuetas nos espelhos apagados, misturando-se com figuras pintadas nas paredes, e famintos, gélidos, sem ousar sair ao jardim abandonado, aquém do porto as ornadas figuras de fino e feroz olhar que não permitiam a ninguém penetrar naquele santuário do desperdício da riqueza antiga e condenada, ninguém pudesse subir aquela escadaria e atravessar aquelas salas além daqueles mármores trazidos há incontáveis anos para ladear-se com o cinzento e o estilizado. Era como se dissessem: “Desaparecei!”. Ou como se ameaçassem: “Afastai-vos!”.

E à noite a figura do antigo e descamado dono poderia ser vista, através das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura de si - e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo antigo era uma torturação sinistramente mergulhada na destruição de um império ali por fim silenciado.