O amante das amazonas, 33
Por Obras integrais Em: 16/10/2009, às 14H06
ERAM sete horas da noite. Benito teve de esperar que Frei Lothar, velhíssimo, acabasse de tomar a sopa antes de poder falar. O Frei, expressão amargurada, fraco, depois da sopa, teve de ser erguido para cair, prostrado, num sofá próximo. Benito acendeu um cigarro e ouviu:
- À caxinauá. Você tem de descobrir a Caxinauá. Só ela sabe, dizia, passando os artríticos dedos sobre o joelho do moço.
Uma índia veio trazer-lhe um café - ele tomava café dia e noite. Benito aceitou uma xícara. Nas mãos do frei a xícara tremia, os dedos longos, magros, como uma galhada artrítica.
- A Caxinauá deve ter voltado para o Igarapé do Inferno. Paxiúba tentou matá-lo, hem? - perguntou o Frei.
- Sim, respondeu Benito.
- Mas Paxiúba, por quê? - o Frei franziu ainda mais a testa.
- Sim, fui atacado por ele, dei-lhe um tiro, mas creio que não o matei.
- Graças a Deus ... - disse o Frei. Graças a Deus... Mas ele não está com a Conchita del Carmen?
- Não - respondeu Benito. Ele a matou.
Pausa. Silêncio, o Frei suspirou, olhos lacrimejantes.
- A Caxinauá deve de ser encontrada na Praia do Cuco, se a conheço bem. Lá desapareceu Zequinha Bataillon. Você tem de alcançá-la. Sem ela, nada saberá. Escute, meu filho. Pierre, antes de vir para o Brasil, morou em Paris. Deve de ter parentes lá. A última vez que o vi foi no Manixi. Ele deve ter trazido aquela pistola de Paris, disse o Frei. E calou-se por um longo tempo.
- Ela é a prova do crime, acrescentou, por fim.
Era uma pistola belga do final do século, de prata. Muito popular naquela época. Uma relíquia. Eu a vi, várias vezes, no cinto do Bataillon.
- Eu a vi no Rio Ji-Paraná, disse Benito. Personalizada. Tem as iniciais “PB”, em ouro ...
- Encontrei-a perto do Igarapé do Riachuelo, continuou o frei, na mão do índio Iurimã, casado com a índia Caciava, que me disse que tinha ganho a arma de Zequinha Bataillon, antes de morrer. Mas eu sei que eles mentiam. Iurimã era homem da tropa de guerra.
O frei continuou:
- A fortuna de Zequinha pode ser calculada hoje em 20 milhões de dólares.
E depois de um silêncio:
- Pierre era bom músico, toquei com ele a Kreutzer, atrasando o andamento. Eram noites inesquecíveis no meio da maior floresta, naquele salão iluminado, cheio de cortinas e tapetes, tocando a Kreutzer de Beethoven. Ele no piano, um autêntico Pleyel, de cauda, mas pequeno. Ele tocava bem, era ágil, nervoso, indócil, inquieto. Aquela sonata tem um módulo que se repete, e sobre esse par de notas Beethoven vai construindo a intriga, uma trama de perguntas e de respostas, indagações, uma seriação de questões amorosas, apaixonadamente transcendentes, que o violino pega e alonga, desenvolvendo, em diálogo com o piano, em rápidas e fortes frases... O segundo movimento conta uma história curta e simples, conseqüência da anterior, que o violino repete, reconta, reforça, concorda, apóia e retoma. O violino entra com alma...
Frei Lothar ouvia a música na imaginação, olhos lacrimejantes. Era mais músico do que místico. Como místico, foi médico.
- Àquele palácio - disse o frei - era um museu de quadros e cristais, prataria, limoges. Com quem ficaram os brilhantes de D. Ifigênia? Os brilhantes, grandes, eram a ostentação daquela casa. Um dia Ifigênia foi a Belém assistir a Pavlova, com quem jantou no hotel. Era amiga de intelectuais. Veio a Manaus para ver aquele autor de best-sellers da época ... como era mesmo o nome dele?
- Coelho Neto...
- Sim. Ifigênia se correspondia com ele, ele tinha uma letra maravilhosa. Ifigênia freqüentava a casa de Thaumaturgo Vaz. Em 1889 ela recepcionou o Conde d’Eu, na Vila Municipal. Mas ela gostava de ficar no Hotel Cassina. Lembro-me dela, em 1883, acompanhando Paes Sarmento à Conceição, para o cerimonial da entrega da comenda com que foi agraciado pelo Imperador - a Comenda de Oficial da Imperial Ordem da Rosa. Quer outro café?
Frei Lothar perdia-se em recordações.
- Mas com quem ficaram as libras de ouro? - perguntou Benito, voltando ao tema central de sua visita.
- Não sei. Nem os quadros.
- Os quadros estão em casa de Ferreira, disse Benito.
- Verdade? Havia um Fromentin, na sala de música. Avançaram nos bens dos Bataillons ... mas como você vai provar isso?
Houve um grande silêncio, algo mortal, naquela sala.
- Como vai provar que eles mataram Zequinha Bataillon?
Ninguém disse mais nada. Até que o Frei suspirou:
- Oh, quanta coisa aconteceu! Perto da Cachoeira Cristal, Pierre construiu um chalé japonês. Tudo desapareceu. Assim também no Seringal Matrinchões, no Calama. No Ayucá, o proprietário, não me lembro o nome, antes de ir-se embora tocou pessoalmente fogo em tudo o que não pôde levar. Ah, terrível. Ah, sim, era o Rigoberto. Vivia em luta contra os catuquinos, contra os turunas, os campos, os maias. Na Ponta da Poedeira, eu tive de fazer um parto, perto do Ayucá. A mulher morreu ali, nas minhas mãos, mas pude salvar a criança. No Rio Jantiatuba, que corre muito forte...
E seguiu-se um prolongado silêncio.
- E as libras, frei, e as libras? - perguntou Benito. Com quem ficaram as libras?
Mas o frei estava dormindo.