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O amante das amazonas, 29

 

DEZESSEIS: BENITO.

 

 

PROEMINENTE, bêbado, apoiado no balcão do Bar Bacurau no inicio da João Coelho, mestre Benito Botelho discorria, sobranceiro, para um grupo de homem entre os quais o arruinado e velho regatão Saraiva Marques. Benito, parecidíssimo com Mário de Andrade, chefiava a animada conversa sobre um dos assuntos de sua principal indagação: o sumiço do filho de Pierre Bataillon no fundo da floresta amazônica. Benito especulava e investigava, e naquele dia tinha publicado um artigo a respeito. Teria na época uns 37 anos. Magro, pálido, mal vestido, bebendo e fumando muito, tinha os dentes estragados, a testa larga e amarela, a calvície avançada e os cabelos crespos já grisalhos. Seu único traço de beleza eram os olhos, vivos, brilhantes, graúdos, mordazes. Por ser um homem irônico, de insinuação venenosa e certeira contra os poderosos e contra o tacanho e conservador meio em que vivia, não passara de paupérrimo revisor do Amazonas Comercial. Mas poeta e poliglota, lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de sólidos conhecimentos de grego e de latim. Autodidata. Dizia D. Estella Souza, funcionária, que ele já havia lido toda a Biblioteca Pública do Amazonas. Conhecedor dos dois mundos, seu domínio ia da Filosofia à Literatura, da História à Filologia. Poderia recitar quase toda a Divina Comédia e o mar de sua memória fotográfica o possibilitava citar, e em várias línguas, os autores de sua predileção, alguns com a imprenta da página, editora, lugar e data. Nunca se viu aquilo antes.

No Bacurau se reunia a escória da sociedade manauara. Eram pescadores, policiais, bichas, poetas, presidiários, prostitutas, comunistas, peixeiros, músicos e o grupo do Clube Satírico Gregório de Matos que infernizava a vida dos poetas maiores do Clube da Madrugada. O Mirandinha sempre aparecia de madrugada para conduzir o Leonildo Calaça, caboclo grande e maduro, de afamada fala. Aparecia o Calixto Diniz, poetinha boçal e enrustido. Velhas mulheres por ali passavam na esperança de encontrar companhia, comida e cachaça. O grande poeta Lopes saía cedo. Mas o ambiente todo fedia a peixe, a obscenidade, a pimenta murupi.

Benito perguntava, argumentava, descrevia o paradeiro de Zequinha Bataillon. O menino tinha sido seu companheiro de infância, Benito crescera no Manixi, vira os Caxinauás, a Maria, o Mulo, o Mito. Oh, Benito! Um sábio e um erudito! Infelizmente desprezava e era desprezado por todos. Era odiado! Irreverente, língua solta, irônico, ferino, irritante. Um bêbado sempre, todas as noites, como sempre foi. Expulso do Colégio Estadual. Não foi reconhecido. Na cidade pontificavam os beletristas, os barões da Academia, os homens de letras, juristas de óculos no nariz e paletó impecável, doutores, jurisconsultos, magistrados, desembargadores. Benito não podia ser levado a sério, com seu jeito calhorda. Mas se falava dele, na roda acadêmica. Retaliação.

A princípio Benito viveu com Frei Lothar que o ensinou alemão. Depois no Orfanato de Padre Pereira, que o queria padre. Com dezessete anos, fopi expulso de lá. Então foi morar com a tia Eudócia, que vendia flores e cocada na Praia dos Remédios, flores artificiais que tinha aprendido a fazer menina na casa da ex-patroa. Benito ingressou no Partido Comunista. No Amazonas Comercial fez de tudo: era tipógrafo, revisor e repórter. Escrevia artigos muito avançados para seu tempo, que saíam quando o jornal não tinha matéria para ocupar os espaços da boneca. Benito os escrevia apressadamente, às vezes no próprio linotipo, de onde o texto saía quase sem erros. Tinha a composição dos artigos na cabeça, e as citações eram feitas de cor.

A casa de Eudócia era um tapiri de palha na beira do Igarapé das Sete Cacimbas. Quando o Rio subia, as águas batiam na soleira da porta. Dois cômodos sem luz, sem água encanada, o banheiro era fossa. Na sala - como era chamada - ficavam ao mesmo tempo o escritório, a biblioteca, a alcova e a cozinha. Tia Eudócia dormia no quarto. Chão de terra batida, tabatinga endurecida. Uma espécie de mesa geral para tudo, onde se almoçava entre pilhas de livros. Um guarda-roupa enorme, sem portas, transformado em estante de livros, livros amontoados, deitados. O móvel, herança da ex-patroa de Eudócia, cerca de 2 metros quadrados, continha mais de 2 mil livros em vários idiomas. Toda a vida miseravelmente ali. Ás quatro da madrugada Eudócia saía em direção do Mercado da Escadaria da Praia dos Remédios. Benito passava as manhãs dormindo, as tardes na Biblioteca Municipal - onde às vezes era o único consulente. As noites trabalhava no jornal, nos puteiros e nos bares sórdidos. A Biblioteca Municipal tinha um precioso acervo. Os dois mil livros do guarda-roupa de Benito eram considerados, por seus discípulos (como eu), os mais importantes da história da cultura humana, de Homero a Machado, de Parmênides a Marx. Benito só lia matéria pesada, antiga ou moderna. A gente não compreendia como ele, bebendo tanto, podia continuar lúcido. Memória fotográfica e inteligência imediata.

NO Diccionario topographico, histórico, descritivo da Comarca do Alto-Amazonas, de autoria do Capitão-Tenente da Armada Lourenço Amazonas, publicado no Recife em 1852 - Manaus era uma cidade “em huma mediana e aprazível colina” que constava de uma praça e 16 ruas “ainda por calçar e illuminar’, de casas cobertas de telhas com “900 brancos, 2.500 mamelucos, 4.070 indígenas, 640 mestiços e 380 escravos”,  população “que passa parte do dia em banhos que os levão aos lagos e às praias”. Porém quando, em 1877 ali chega de Portugal o comerciante de borracha Manuel dos Santos Braga - Manaus já era moderna, apenas vinte anos depois.

Já idosa era D. Maria José, esposa do comerciante, quando pegou a menina Eudócia para ajudar na cozinha. Tia Eudócia não amava Benito, que lhe foi mais uma obrigação moral, seu dever no fim da vida. Eudócia era solteira, como todas as criadas daquele tempo, e pequenina, aparentemente franzina, sorridente. Sorria com toda a expressão das milhares de rugas do rosto - os olhos graúdos, a testa sofredora e larga. Trabalhou até bem tarde. D. Maria José gostava do seu serviço, sua limpeza, honestidade, silêncio, respeito, trabalhava como num ritual religioso, perfeita e anônima. A patroa quis levá-la para Portugal quando se foi, mas Eudócia não quis, e passou a viver das cocadas e das flores de papel que vendia ao lado da mesa de tacacá da Comadre Lula. Não. Eudócia também não o odiava, mas não o podia amar, nem ficou feliz ao vê-lo, pois ela, cansada, velha, teve de, a partir de então, sustentá-lo - aquele rapaz não ganhava nunca dinheiro para ajudar em casa, ainda que ela sentisse orgulho de tê-lo e soubesse que ele a amava a seu modo.

Benito consumia o pouco dinheiro que ganhava no Amazonas Comercial comprando livros e bebida. E ainda tinha de pedir emprestado à Eudócia para o bonde de “Flores”. Longas temporadas desempregado, lendo e escrevendo sem sair de casa. Ela estaria melhor sem ele? Antes dele conseguira amealhar as economias que ele paulatinamente ia gastando pelo simples fato de ser. O trabalho dela dobrou. Benito era um pesquisador, um pensador, nada mais sabia fazer. Mergulhado no seu mundo interno, de onde só saía bêbado (e tinha de beber para aturar Manaus e os outros) não teria sobrevivido sem ela. Opositor nato, odiado pela classe dominante, Benito, pessoalmente insuportável, não perdoava a mediocridade de ninguém, não conseguira nem o emprego na Biblioteca Municipal, que almejava: Ele era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira, laudatória, servil, risonha e patriarcal. E ele nunca amou ninguém, e nem se sabe de alguma mulher, além das prostitutas da Frei José dos Inocentes para onde ia já muito bêbado. Benito era o inimigo da elite de quem Eudócia fora aliada e escrava - ela, porém, grata à patroa, que considerava uma espécie de bênção, não compreendia o ódio do sobrinho, ódio de que, por isso, também era vítima.