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A sombra da samaumeira tornava mais triste a sua figura que esperava sentado que ficasse pronto e assado na folha da bananeira um tambaqui que seria um reforço para seu coração e estômago. Era a primeira e substancial refeição que ele ia comer há dois dias em que vinha viajando. Frei Lothar sentia-se cansado e refletia sobre sua vida e desventura como a que tinha acabado de sofrer. Ainda ofegava, abalado com a desgraça. Sentia certa desconhecida fragilidade quando menos velho, e por isso sabia que a carga de seus dias na Amazônia chegava ao fim, que agora tinha de abandonar a tudo e a se aposentar e morrer. Que vindo de canoa por um furo entre o Paraná dos Numas, atravessava uma ilha flutuante de murem quando a canoa picou numa espécie de toalha móvel, num horrível tapete na forma de um mapa do Brasil, formado por crepitantes e armados escorpiões amarelos, na área de vários metros quadrados, uns sobre os outros, e avançavam, atravessando o rio, emigravam e um caboclo começou a gritar e a canoa quase virou.

- Rápido!, ordenou o padre.

Mas já os escorpiões ameaçavam subir a bordo e Frei Lothar, a atear fogo nos jornais que trazia para o Juiz do Calama, enchendo o casco de labaredas e queimando-se todo oh, meu Amazonas!, Deus é grande mas a Floresta é maior, e eu já não sou o mesmo.

Voltando a recobrar o vigor esperava depois do almoço partir no Barão do Juruá, agora propriedade de Antônio Ferreira, como na verdade tudo ali. Mas Ferreira fizera um mau negócio: o preço da borracha cada vez mais ia para menos do que valia 100 anos antes, como vira o Frei na viagem que naquele mês fizera ao Rio Machado - os seringueiros dizimados por febres, arrasados pela crise, vazios desde que a borracha do Ceylão, sem o microcyclus, suplantou a produzida ali, e milhares de seringueiros testemunharam o grande fim do gigantesco império, com que grandes fortunas, feitas da noite para o dia, assim desapareciam, e o Amazonas voltava a ser o que era, antes de 1850: o inferno mergulhado na crise econômica que durou meio século e que matou milhares.

Eram ainda poucos os lugares aonde o Frei suportava ir e o Manixi era um desses. O Frei perdera a fé, falava grosso, cuspia no chão, andava armado, tinha mau humor e mau cheiro. O Rio Machado o deslumbrava, o seduzia, as águas verdes correndo sobre esmeraldas, terras estranhas de um mundo estranho, onde só se encontravam aventureiros e índios: os Gaviões, os Araras, os Suruins, os Orelha-de-pau, ferozes, selvagens, indomáveis, escondidos na alta e sombria floresta. Era o Paraíso, o Inferno. Frei Lothar amava aquilo, e não saberia viver sem aquelas viagens, as aventuras em busca do Desconhecido. Mas a pior viagem que fizera fora em 1908, quando Frei Lothar, numa caravana que levava seringa, de Cruzeiro do Sul ao Seringal Cocame, do Rio Juruá ao Rio Tarauacá, atravessou as terras do Seringal Manixi, cortando o Rio Gregório, o Acurauá, avançando uma picada de 300 km de extensão. Mas naquele tempo Frei Lothar era jovem, fortíssimo.

Ainda não era passado muito tempo quando as sandálias afundando na lama de tabatinga ele via o carregamento da alvarenga que o Barão do Juruá puxava para a cidade de Manaus desde o Rio Jordão. Pois a velha batina fedia, estava molhada de suor. O suor escorria sobre outro mais antigo, encharcando os remendos. Debaixo de um grande, velho e aziago guarda-chuva preto, o Frei parecia ridículo no barranco, coisa estranha, exótica, à margem, na maior dificuldade. O Barão do Juruá carregava, e o Frei tinha descido para almoçar, trôpego, necessitando de terra firme e fugir do calor, os pés afundavam no barro mole. Subira com dificuldade a ladeira escorregadia da margem quando os primeiros cães apareceram. Primeiro foram dois, que desceram a ladeira com ódio. Depois vieram outros e Frei Lothar se viu finalmente cercado de cães, e usava a cruz do rosário para defender-se. As crianças e os homens se riam, velho imprestável. Alguns lhe deviam a vida. Mas Fernando Fialho, o dono do porto, apareceu de repente e o socorreu. Fialho estava atarefado no carregamento de juta que seguia para Manaus, pois a nova riqueza da economia da região era a juta. Pareceu-lhe que Frei Lothar não podia embarcar porque os carregadores retiraram a prancha, e pela prancha passavam fortes e baixos, arriados pelo peso dos fardos que afundavam no barranco. Frei Lothar olhava as águas barrentas que emporcalhavam suas sandálias. Os meninos desceram a ladeira. Já não lhe pediam a benção. Ninguém o respeitava, velho e difamado. Diziam dele que gostava de meninos, o que era mentira. Os meninos pulavam na água barrenta, perto dele. A água se esparzia, brilhante. Ameaçavam dar um banho no missionário. Frei Lothar não reclamava porque estava doente, a doença da velhice, sem forças, sem coragem, sem nervos, sem vida, sem ânimo, sem fé. Olhava com compaixão, suor e impaciência para tudo aquilo. Era em verdade um bem aquele respingo que o refrescava. Se pudesse tiraria a fedorenta batina e mergulharia feliz naquela água. Frei Lothar misturava todos os fatos: os escorpiões, os cães, o banho, a doença, e a velhice, a calúnia. O fim. O aniquilamento, a morte. Frei Lothar, as pernas a tremer, sentia uma ponta de desmaio, no calor. Miseráveis cães! Miseráveis moleques! Miserável vida! A tarde começava a cair e a noite se aproximava. O Barão do Juruá ia zarpar, finalmente, vazio - uma benção, que Antônio Ferreira proibira de levar passageiros. Não, não era verdade que o mundo estava contra ele. No dia anterior fôra mesmo bem tratado. Ferreira aturava o velho padre que medicava as gentes dos seringais. O Barão do Juruá e tudo e todos que pertenceram ao império Bataillon eram de propriedade de Antônio Ferreira. O Barão ia vazio, o Frei viajaria com sossego, com conforto. Ele conhecera viagens em embarcações cheias de porcos e de redes, fedendo a excremento e a peixe podre. O pescoço do padre ardia de calor, o suor escorria e arrojava-se no peito. Com que facilidade aqueles homens erguiam e carregavam os pesados fardos! Ah, juventude, juventude! Ah, força dos braços! Frei Lothar chegara de Tarauacá, que ele ainda chamava de Villa Seabra, tinha atravessado a pé o difícil Paraná São Luís e o Igarapé São Joaquim, passado por Universo, por Santa Luzia, por Pacujá, viera de canoa por aquele furo. Oh, não ... Ele já não era daquilo. Que se preparasse para morrer. E Frei Lothar não queria morrer, passara a vida combatendo a morte. Acabaria no fundo de uma rede em Manaus, na freguesia de Aparecida, no meio da caridade imprestável. Não, aquilo não era certo. Gostaria de morrer em sossego, ou de regressar à Europa, sonho que se dissipava, pois era pobre. Quarenta anos ali, no fundo daquele inferno, esquecido, reduzido, perdido na selva. Saberia viver longe daquele mundo selvagem? Como poderia chegar à Europa, à Estrasburgo, sua terra natal? Fizera tudo o que haveria para ser feito, lutara contra feras e febres, rezara missas no meio de índios, batizara curumins ilegítimos, nos barrancos. Que mais? Ainda o queriam? Como não podia agora montar, devido à ciática, tinha de viver a pé, envergado ao peso dos anos e da artrite - Deus meu! - toda uma vida tristíssima, desbaratada, entre serpentes, difamado, corrido de cães ... difícil mundo! E Frei Lothar só via, dentro da Igreja, a luta pelo poder! Salvara a vida de milhares de homens e era acusado de exercer ilegalmente a medicina! As famílias de Manaus o rejeitavam, que ele tinha má fama e maus bofes, escarrava no chão e dizia palavrões, praticando entre gentes humildes. Não, nada recebeu em troca, nunca teve dinheiro, nunca teve onde morar, nunca bajulou os poderosos nunca os aturou, sempre os irritou. Depois de quarenta anos de trabalho só colhera inimizades. E o calor e os mosquitos, as noites sufocantes. Varara florestas impenetráveis cheias de cobras, aranhas e escorpiões. E como reconheciam? Com a calúnia, com a degradação do nome. Aqueles crápulas não podiam compreender a vida no meio dos índios sem ser por algum sórdido motivo, nascido da doentia imaginação deles. Ninguém acreditava que ele servira naquele inferno quarenta anos em troca de nada. Aquilo roía sua alma. Havia cartas dos superiores com acusações, o Provincial veio com falas ... Ah, que o tirassem dali, que ele já se ia para sempre - se o matassem lhe fariam um grande bem ... Ele estava sobrando naquele mundo, certamente gostaria de morrer a aturar o paroquial, que detestava. Ninguém gostava daquele homem feio, que de padre só tinha o hábito. A voz, grossa e entediada, as mãos rudes e fortes, a expressão feroz. Frei Lothar odiava a classe dominante, odiava a religião e a fé, que para ele eram a medicina e a prática. Não falava de coisas piedosas, coçava o saco, rezava de má-vontade, irreverente, lacônico, sincero, agressivo, grosseiro com as autoridades, primitivo e rude. Frei Lothar, na Amazônia, era um militar irritado, um fiscal de Deus, armado.

A noite já andava densa quando a alvarenga ficou cheia.

Transferiu-se a prancha para o Barão, que já se ia mexendo e ameaçava se afastar. Frei Lothar subiu com cuidado e se foi para o camarote onde tomou o banho antes de jantar.

 

 

LOGO limpo, satisfeito, depois do jantar, estava de melhor humor. O Barão prosseguia sua viagem no meio da noite - uma temeridade, mas como era de esperar Ferreira queria o navio em Manaus logo. O rumor das máquinas já não o incomodava, resignara-se. Frei Lothar subiu para a popa, para uma espécie de terraço no escuro. Estava sozinho. O vento começou a fazer-lhe bem, aquele vento tinha um cheiro terno, uma alma terna, ele ficou vendo a noite escura, na navegação de descida, entre o vulto das sombras. Era assim que ele sempre se sentia - um passageiro do mundo. Nunca parava, noite a dentro, vida a fora. Ficou pensando no homem que tinha assistido em Villa Seabra. Aquele homem ia morrer ... Que coisa é a morte? Que coisa é a fé? Muitos homens tinham morrido nos seus braços, e ele nada pudera fazer. Que coisa era a morte? Sua fé há muito perdida. Lixe-se o Provincial! O que Frei Lothar via e viu durante toda vida - não foi Deus: Foi a dor, a dor e a morte, a miséria e a desolação. Frei Lothar se levantou com esforço, saiu dali e foi ao camarote de onde veio com o violino. Sentou-se. Ia estudar até o sono chegar. Era a Segunda Partita de Bach, que sabia de cor, mas nunca conseguia superar certas dificuldades. Tocava sem a partitura. Estudava sem a partitura, no escuro, dentro do vento veloz. Sozinho. Sem partitura e sem luz, sem ninguém. Oh! No Amazonas era assim. O Amazonas não tinha partitura, não tinha luz, nem ninguém. O Amazonas era uma imensa planície de miséria. A depressão econômica pairava no seu monstruoso silêncio. A Partita saía quase boa dos artríticos e velhos dedos. Nunca tivera tempo de estudar, nunca tivera condições, acomodações. Viajava com o violino em navios e em canoas, nos furos e lagos, e por pouco não se perdeu o violino junto com os escorpiões: aquele era um violino precioso, simbolizava o que ele não tinha sido. O mau padre, o mau médico, o mau violinista. Nunca fizera nada bem. Nada inteiro. Agora estava velho, fraco, tinha pouca fé, pouca ciência, pouca técnica. Oh, pior que a morte é a mediocridade! Frei Lothar pensava, o violino gemia, ladainhas, recitações, reflexões. Assistira os doentes sem recursos, dissera missas sem paixão, e agora tocava mal a Partita. Sem remédios, sem partituras, sem higiene, sem saber. Frei Lothar tocava com imaginação. O violino era um Guarnerius. Tinha sido presente de Juca das Neves, um dos poucos homens por quem Frei Lothar tivera amizade. Na verdade, os Guarnerius não são imitação. São aprimoramento dos Stradivários e muito mais sonoros, apropriados para as salas de testes e grandes orquestras, ao passo que os Strad eram camerísticos. Ajudado pela inspiração, a Partita saía quase boa. O Barão avançava no meio da noite. De repente, o Frei se lembrou do Concerto Duplo - beleza! - e emendou a Partita num dos trechos de sua parte. No Concerto Duplo tudo era ânsia, sublimidade. Ele se imaginava no meio da orquestra, lembrava-se dos sonhos de ser músico, e não padre, mergulhava no concerto ouvindo o violoncelo e toda a grande orquestra. Via as galerias repletas, de onde explodia o sucesso, o aplauso, tudo aquilo bem longe do Amazonas, bem longe da morte. Ele foi levado pelo devaneio. Por quê? Do antigo misticismo não sobrava nada. Por quê? Tocava Brahms cortando ao meio a floresta Amazônica. Por quê? A noite corria no altíssimo, e o céu da Amazônia de repente ficou transparente e claro e coberto de estrelas que cintilavam, e tudo lhe apareceu de uma só natureza, num bloco em que ele não existia mas estava integrado num todo - e Frei Lothar, parando de tocar, correu para a amurada com lágrimas nos olhos, e de repente viu, em êxtase, que a Imensidão e a Eternidade apareciam subitamente ali na sua frente, vindo e chegando a ele, amplas, entrando por seus olhos, por seus ouvidos, e tudo era um só Incomensurável ... - e ele, integrado, eterno, deu um grito e se sentiu incompreensivelmente feliz.