ESGARÇADOS sobre o tapete, brincam bordados com as sombras e luzes que saem da porta. Reverberações de luzes na lâmina do espelho, foco de velas nos castiçais de ferro e círios que cantam um momento lírico. Quando o coronel toca elas parecem dançar. As lembranças familiares me levam num aporte imaginativo. Minha mãe gostava de andar descalça. Desde que saí de Patos, no Natal de 97, não pensava tanto nela com tanta ternura. Há muito tempo estou aqui. Meu irmão e meu tio Genaro, mortos, se misturam às manchas inquietas do chão, à morte de Zilda, esposa do Laurie Costa, à Maria queimada no ataque dos Numas, ao acampamento Caxinauá. A solidão do espaço vazio se disfarça. Sibilina sensação de que as portas não estão bem fechadas, de que os gonzos corniformes estão abertos, as parte de bode inscritas na coiceira sobre o batente duplo e os tridentes e cornijas riscando o quadrilongo das abas. Entro, cautelosíssimo. Atravesso a área vazia na ponta dos pés. Na parede defronte descubro uma porta desconhecida para mim e como que disfarçada na decoração. Toco-a com o dedo, sentindo-a. Experimento a maçaneta oculta, a aba cede e soa como uma vaca desazeitada. Aparecem, espaçadas, cadeiras de vime escuro; soam morcegos de vento, estrídulos chiados nervosos estilhaçam o ar da noite, pequeninos. Estou no liminar do quarto. Alguém dorme no torpor da penumbra, semi-iluminado por uma lâmpada que se apaga. Vejo então, como um coice, a figura de tordo de metal caído, a variada, a dispersa figura de um homem que dorme, potestade, submerso, grande, pernas estendidas e abertas sobre a poltrona. É Paxiúba, ele, o corpo assustador, o visível, grande, bronze, estranho membro encurvado. Sim, ele dorme como um sonho do sangue de seus mortos.

 

 

- E onde está Ribamar? - ouço a voz de D. Ifigênia que me procura. Fecho a porta e sigo para atende-la. Durante a noite estou de serviço.

- Estou muito só, disse Pierre na despedida, mas meu filho deve regressar. Ele sente saudades da Caxinauá e de Paxiúba, completou o velho com alguma ironia. São amigos. Paxiúba é o guardião. Maria a segunda mãe e a primeira amante. José quis levá-los para Paris, mas consegui dissuadi-lo disso. Boa noite, meu amigo. Durma bem. Ivete deve preparar-lhe boa cama, concluiu ele, sério, digno, natural, estendendo-lhe a mão franca.

 

O Juruá é um rio de águas de barrela, de águas amarelas, barrosas, lixiviadas, que depositam três dedos de barro grosso no fundo do copo de vidro. Foi nessas águas que Pierre Bataillon e Ifigênia Vellarde desapareceram, em 1910, quando a lancha Angelina naufragou.