Lentamente, cuidadosamente,  a grande porta se abria e a bela maacu apareceu.

- Venha cá, menina - disse-lhe Pierre. E quando a índia se aproximou, o velho franziu os sobrolhos, encarou a jovem de frente e perguntou ao visitante: “Você conhece Maria Caxinauá? Você já a viu?”.

 OS ásperos, compridos cabelos ensombravam a face com a figura da morte. As pupilas eram dadas por incompreensível aura branca, um espantoso horror. Nariz aquilino, cigano. Pele bronze escuro queimado e fosco, amassado como papel. Sujo, longo vestido azul, rasgado num flanco, sem cintura, arrastando-se no chão como uma louca num hospício. Observada à distância, era a concentração do Ódio. De perto, era o Medo, o incontrolável Pavor, olhos bem abertos. As faces murchas indicavam que perdera todos os dentes, as sobrancelhas eram ralas. Mas aquela mulher não era uma velha! Subitamente se deixava ver! A face tem arrogância, desprezo, desafio, o olhar perigo, o veneno, pensou Ferreira, apertando o laço da gravata. Hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente. Desde aquela noite Ferreira a teme. Vê a Inimiga. Pois a Caxinauá é a vingança acumulada, petrificada. Toda a multidão inumerável de índios massacrados reterritorializava-se naquele corpo. Todos os torturados, os banidos, os exterminados pela humanidade européia, os saqueados, desculturados se cartografam ali, na pessoa física e individual de Maria Caxinauá. São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias - vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá.

 NUM movimento brusco, aquele guerreiro Numa voltou-se com as mãos crispadas e gritou som próprio dos felídeos, e ouviu-se pela floresta o rufar rumoroso no chão árido e uma comoção de olhos sangüíneos sob cabelos e tremor bélico da pele. Todo o seu poder cresceu e parecia precipitar-se com o fogo que ele despejara e se alastrava na paxiúba da maloca. Sua arma de longa sombra propagou-se no ar e abriu o crânio de um jovem Caxinauá que apareceu ao lado, precipitando-o ao fundo do solo - de uma órbita o globo ocular saiu, cuspido ao chão, como um ovo cozido rolando, uma bola, na poeira do chão. Arremessou uma pesada pedra sobre o inimigo que pula como tigre ferido e acossado, e com a carne rasgada ele grita, voz de trovão castigado. Sua face crispada de ódio, seus ombros afastados, ergue o braço com a pesada arma e avança para matar como um guindaste, erguido, o casco de enorme navio retirado do fundo das águas, as águas escorrendo como baba de um muco escuro e podre. Outros gritam e correm. O incêndio se desenvolvia largo, alto, e rasga e vence o ar da noite com suas asas de fogo, borboletas abertas. Grande e inexplicável medo se abate e se apodera sobre os Caxinauás assustados por algum Deus, e sobre todos a morte ia descendo e se espargindo com funesta noite de cólera paralisante, ausente toda força e toda coragem, neutralizados. Oh!, ela estava completamente queimada, envolta em chamas, nua, mas não sentia dor ou medo. Desapareceu na direção da sombra, esperando lá com as mãos vazias o adversário que persegue. Sim, ele vinha. E vinha com disposição de matar, com a escuridão. Procurou no agoureiro leito do Igarapé do Inferno uma pedra, mas só esbarrou com cadáveres esfacelados dos irmãos Caxinauás que o vulto do escuro sangue sepultava. O Numa tinha vindo buscar e procurava na água. Ela tinha dificuldade de limpar o sangue empastado nos seus olhos, isto que a oferecia ao inimigo próximo e audível, à sua procura, com a arma na mão. A hora era dele, do inimigo. O sangue queimava os olhos e ela estava desarmada. Silêncio. O inimigo escuta e espera a efetiva reação, mas não sabe onde estava, não a sente, e avança no escuro. Foi então que houve a intercepção de um guerreiro Caxinauá que se precipitou fugindo covardemente e foi atacado. Foi a hora de sair dali pois os dois se abraçaram para se matar e o Inferno os tragou. Ela estava mais distante do que pensava? Trezentos irmãos de raça exterminados. O incêndio iluminava a floresta e era visto do Palácio. Ela não estava preparada para o sacrifício? Frei Lothar, que apareceu de repente, a recebeu. Ela nunca mais olhou seu rosto num espelho. Zequinha não a quis mais, como mulher.