Rogel Samuel: O amante das amazonas, 11

 

O almoço fora servido por Maria Caxinauá, a índia parecia velha como a floresta. A fresca maacu expõe seus braços à imaginação do olhar. A seda acentua e escorre como cola gosmenta. Naquela hora tudo escorre. Morna, preguiçosa, sensual. O igarapé escorre em velocidade invisível, na passagem oleosa. Silencio. Rio de óleo. Chama-se “igarapé” por economia geográfica, por seus estreitamentos, sua foz escondida entre duas grandes sumaúmas. “Do inferno” significa “dos Numas”, de onde vem, do leite do látex e dos índios. A concentrada riqueza. Pierre Bataillon descobriu aquele rio em 1876. A extração amazonense dobrava, a cada década. De 1821 a 1830 eram 329 toneladas. Na década seguinte dá-se a expansão: 2.314 t. De 41 a 50, 4.693 t. Grande desenvolvimento de 51 a 60: 19.383 t. De 71 a 80, 60.225 t. Após a sua chegada: 110.048 t! Até aquele ano Pierre conseguira extrair cerca de 20 mil toneladas, amealhando uma fortuna em libras, explorando quase 500 homens que se espalhavam numa região onde caberiam alguns países europeus. A maacu olha. Ferreira se sente atravessado por um calafrio mortal. Sente frio na hora de maior calor. As carapanãs e as moscas sanguessugas zunem nos ouvidos. Os piuns incomodam muito. O calor é pesado, úmido, adocicado, de jenipapo e mel. Amolece. Fantasias, devaneios, delírios, sonhos. Aquela era a primeira viagem de Ferreira ao interior. Ele e o sogro queriam o Seringal, armavam os complicados lances de um jogo de xadrez comercial. Ferreira parecia cansado da viagem. Pierre soltava fumaça no ar. Era só cautela e espera. A qualquer momento, surpresa. Agora Pierre começava a falar dos Numas. Ferreira passava do desejo ao temor. Olhava com pavor para as árvores, como se temesse surgir um monstro. Pierre parecia calmo. Anulava seus fantasmas, as pernas cruzadas, como num café parisiense. Por que aquele homem não arregimentava sua fortuna e voltava para Paris? Pierre, o inesperado. Sua ambição era o antídoto contra o tédio amazônico. Desafiadora, Ivete (que assim se chamava a índia, Ivete Romana) considerava o jovem de longe. Ela, desafio e indução. Ferreira tossia, compunha-se na cadeira. Ivete movimentava os olhos com a elasticidade de serpente, devastadora e tátil. Ferreira recuava na cadeira, sentia-se tocado. Através das colunas de pedra do parapeito se descortinava o excessivo panorama daquele estilizado painel amazônico neo-rococó, entrelaçado de gavinhas e ramificações. A floresta fechava seu abraço. Mas o moço tentava sobreviver, na plenitude do anfiteatro das copas das sumaúmas pré-colombianas. No Juriti Velho havia uma árvore de 60 metros de altura. O edifício todo se encastelava, encapsulado de civilização da humanidade européia. Estava onde não chegavam os saberes constituídos. Como que traído, Pierre vê a possibilidade de neutralizar o visitante. Espera tirar o secreto motivo que o trouxera ali. Adivinhava cordialidades ameaçadoras. Precata-se em suas cautelas, conversas, narrativas. Os curumins brincam na ubá atracada. Fecham o nariz com dois dedos, pulam de pé. Depois correm pela margem. Estrídulos, incessantes, como um bando de periquitos. Mundico, o maior, é filho da Isaura, cozinheira do Palácio. Ela tem dois filhos de pais diversos. O segundo filho não está ali. Chama-se Benito Botelho e está em Manaus. Benito foi o maior intelectual amazonense. Quando menino, atacado de varíola, Benito foi levado por Frei Lothar, que se afeiçoou a ele. Acabou criado no Vassourinha, orfanato do Padre Pereira, pois Frei Lothar nunca parava muito tempo em Manaus. As moscas zumbem, malignas, no silêncio da tarde. Desfia vertigem o igarapé entre árvores. Não há ninguém nas adjacências. As árvores paradas. Profundas. Imersas no êxtase verde, no calor, na eternidade, na fecundação da tarde. O espírito do jovem jurista está com a índia. Um papagaio nacionalista quebra o silêncio do espaço e esvoaça em direção à outra margem. Papagueia esganiçado, com alarde de si, alarido e escândalo. Aparece, na curva do rio, um remador silencioso que cumprimenta o Palácio e lambe com o remo a lâmina líquida da superfície das águas. Na sucessão de novas ocorrências, aparece um belíssimo macaco-leão. Muito pequeno. No mamoeiro, peno do terraço. Começa a descer. Pula para o parapeito. Olha para os homens sentados, imóveis. Volta para o caule. Pára. Olha para cima, teme o céu. Olha para baixo, teme os patos. Olha para mim. Aquele macaquinho olha com toda a porção da cabeça, não apenas com os olhos. Depois desce, muito rápido, num risco do ar, desaparecendo no pátio dos patos. Agora há um cheiro de matrinchão, odor de pimenta e tucupi. O ar é tão oxigenado que fico tonto. Cai a calma. Penetra os poros. Vaporosa, gosto tranqüilizante. A estática, a impassibilidade. Um obscuro deus dorme, no inominável, no universal, imerso, incompleto, pré-histórico há um milhão de anos, desde que aquilo era mar.