Nos primeiros dias de 1993, um incêndio destruiu uma casa na região francesa de Prevessin, perto da fronteira com a Suíça, onde morava um médico, Jean-Claude Romand, pesquisador da Organização Mundial da Saúde, em Genebra. Os bombeiros tiraram da casa em chamas os cadáveres da mãe (Florence) e dos dois filhos (Antoine e Caroline); o pai estava gravemente queimado, mas vivo. No dia seguinte, o tio de Romand foi à casa dos pais dele para dar a notícia. Chegando lá, encontrou o casal de velhos morto a tiros de espingarda, juntamente com o cachorro. A polícia pensou em vingança: quem teria tentado exterminar uma família inteira, em duas casas situadas a 80 km de distância? Mas aos poucos surgiu uma verdade mais chocante do que o crime em si. O criminoso era o próprio Dr. Romand: ele matou a mulher e os filhos, depois pegou o carro e viajou para matar os pais, aí voltou e ateou fogo na casa. Por quê?

    A investigação revelou uma verdade muito mais inacreditável. Descobriu-se que o Dr. Romand não trabalhava na OMS, como acreditavam todos os seus parentes e amigos: ninguém lá o conhecia, seu nome não constava dos registros, nem dos anuários médicos. Acabou-se descobrindo que ele nem sequer tinha se formado em Medicina, tendo abandonado os estudos no segundo ano. O mais incrível é que sua mulher Florence e seu melhor amigo (e vizinho), o médico Luc Ladmiral, tinham estudado com Romand até a formatura, quando ele, em vez de clinicar, optou por tornar-se pesquisador da OMS.

    Romand fingiu estudar, fingiu formar-se, fingiu trabalhar, durante dezoito anos ininterruptos, mentindo a todas as pessoas que o conheciam. Todo dia pegava o carro, cruzava a fronteira suíça e ficava zanzando, tomando café, lendo jornais. Alguém perguntará: e como ganhava a vida? É aí, no bom e velho capítulo financeiro, que começa a tragédia. Como tinha acesso a bancos suíços, ele começou a pegar o dinheiro dos pais, do sogro, dos amigos, para depositá-lo em bancos de Genebra. Na verdade, depositava-o em sua própria conta. Ao longo de dezoito anos viveu das economias alheias. Quando o dinheiro acabou e o cerco começou a se apertar, ele resolveu (disse depois, no tribunal) "matar aquelas pessoas a quem não queria causar uma grande decepção". Bang, bang, bang.

    O fato é verídico, já resultou em dois filmes e no notável livro "LAdversaire", de Emmanuel Carrere (Paris: P.O.L., 2000). De mentirosos compulsivos o mundo está cheio, mas, mais do que um estudo sobre a mentira, o caso Romand (http://jc.romand.free.fr/) nos sugere um estudo sobre credulidade, respeitabilidade, aparências. Como é possível que ninguém percebesse? Que ninguém desse um telefonema para checar? A tragédia de Romand nos mostra uma das fragilidades de civilização, do mundo organizado e politicamente correto em que todo mundo confia em todo mundo. Ali, uma bolha de sabão dura dezoito anos, porque ninguém acha necessário tocá-la com a ponta do dedo só pra conferir.

Bráulio Tavares é escritor e jornalista
Publicado originalmente no Jornal da Paraíba