Nova edição: contos de Lobato em volume único

Ubiratan Martins

“Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são” – a frase imortalizada por Mario de Andrade em Macunaíma poderia muito bem ter sido escrita por Monteiro Lobato (1882-1948). Basta conferir o tom de seus textos curtos, reunidos agora pela primeira vez em um único volume, para se ter a dimensão de sua visão realista em um momento do Brasil (início do século passado, a chamada Primeira República) em que a pobreza era dominante porque a maior parte da população parecia imersa no atraso.

Contos Completos, que a Biblioteca Azul (selo da editora Globo) lança nesta semana, reúne os quatro livros de contos que Lobato publicou em vida: Urupês, em 1918, Cidades Mortas (1920), Negrinha (1922) e O Macaco Se Fez Homem (1923). São textos em que ele comprova não ter se influenciado pelo clima de reforma que marcava os autores do Rio de Janeiro, tampouco se entusiasmado pelas ilusões da Semana de Arte Moderna de 1922, que encantou a jovem burguesia paulistana.

“A contundência com que constrói a imagem do País, as imagens que apresenta da gente que o habita, as situações e os conflitos de seus personagens não só provocaram recepção favorável imediata como permanecem importantes no quadro da cultura brasileira, sobretudo pela forma com que Lobato, nestes textos, dá à realidade que quer mostrar, a da ficção”, observa Beatriz Rezende, professora da Faculdade de Letras da UFRJ e autora do prefácio da edição. Para ela, as narrativas do escritor paulista não eram para entreter, mas para provocar.

Personalidade de múltiplas facetas, movido por sonhos e utopias, Monteiro Lobato era um homem que tomava partido sobre todos os assuntos polêmicos de sua época, defendendo suas posições em cartas e artigos que publicava na imprensa, sobretudo no Estado. E sua paleta de opiniões variava na composição, da defesa da manutenção do petróleo brasileiro a críticas de arte, cuja contundência o credenciava como um dos mais respeitados observadores de artes plásticas da época.

No prefácio que escreveu para Contos Completos, a professora Beatriz Rezende atenta para a importância pictórica também em sua escrita. Citando uma passagem da obra Um Jeca nos Vernissages (Edusp), de Tadeu Chiarelli, ela observa que é possível identificar “os princípios da estética de Lobato, princípios estes que se estendem das artes visuais à literatura, na intenção de formalizar um programa naturalista-nacionalista para a arte brasileira”.

O ponto de partida dessa análise é considerar em Lobato uma fidelidade à verdade como base da crítica naturalista. “O naturalismo nacionalista em artes visuais queria ser uma tentativa de superação do atraso e da dependência do País, nesta área, em relação às nações europeias”, observa Chiarelli. “A arte moderna de Lobato era a arte naturalista, preocupada com a captação do ambiente, um comentário pictórico do dia a dia.”

Assim, não é de se espantar que seus contos tragam descrições que, muitas vezes, correspondem a verdadeiras pinceladas. Os Faroleiros, por exemplo, o primeiro texto de Urupês – tem-se a impressão, segundo Beatriz Rezende, de se estar diante de uma das inúmeras “marítimas” que os artistas pintavam na transição do século 19 para o 20: o mar e um farol distante com sua luz.

Escreve Lobato: “Cessam os olhos de rever as imagens que desde a meninice lhe são habituais. Para os ouvidos só há ali, dia e noite, ano e ano, o marulho das ondas às chicotadas no enroscamento da torre; e para a vista, a eterna massa que ondula, ora torva, ora azul. Variantes únicas, as velas que passam de largo, donairosas como graças, ou os transatlânticos penachados de fumo”.

A julgar pelas suas opções descritivas, é fácil concluir que Lobato tinha grande identificação (e admiração) pelas pinturas de Almeida Júnior e seus quadros do “verdadeiro” homem brasileiro – nasce aí a famosa figura do Jeca Tatu, que Lobato primeiro vai hostilizar, por sua completa falta de iniciativa, para depois valorizar como perfeito representante da cidadania nacional.

São dos pobres que Lobato mais e melhor trata em seus textos curtos. “No universo de sua ficção, como no País dos anos 1920, não há dinheiro, há poucos empregos conseguidos sempre pela estrutura do favor, não há possibilidade de ascensão social”, comenta Beatriz Rezende. “Ao escritor, também fazendeiro e editor, não interessam os personagens elegantes da sociedade emergente, que se moviam entre as metrópoles europeias e nossas capitais, assim como também não vê o País com as lentes frequentes do ufanismo. Sua estética como sua ética, se ocupa do que falta ao País e a seus habitantes e não com as ilusões da modernidade, com suas ‘baratinhas’, melindrosas e almofadinhas, viagens a Paris e outros luxos partilhados por poucos.”

Diante dessa situação precária, a estética naturalista-nacionalista se encaixa como uma luva. Irritado com as queimadas, estúpida solução adotada por cultivadores para preparar a terra para novo plantio, Lobato, também agricultor, fez pesadas críticas na imprensa, na qual ainda apresentou um retrato desolador das decadentes cidades do interior de São Paulo, quebradas pelas mudanças de rumo da produção agrícola, sobretudo o café.

E a crítica logo se estendeu para a ficção – no conto Cidades Mortas, do livro do mesmo nome, Lobato é implacável ao retratar o Vale do Paraíba: “Ali, tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito”. Beatriz Rezende destaca também Café! Café!, conto em que um fazendeiro contrário à República, que julga culpada de todos os problemas, aposta na monocultura do café: “A fazenda era uma desolação; a penúria extrema; os agregados andavam esfomeados, as roupas em trapo, imundos, mas a trabalhar ainda”.

“Nem mesmo a emigrante alemã do caso dos quatrocentos mil-réis narrado em Dona Expedita (de Negrinha) está livre das dificuldades em conseguir garantir a sobrevivência, no sonho de um emprego doméstico por quatrocentos mil-réis, disputado com dona Expedita, senhora da pequena burguesia empobrecida que anunciava em jornal seus préstimos de ‘tomadeira de conta’ ou dama de companhia, ‘graus levemente superiores à crua profissão normal de criada comum’”, completa a pesquisadora.

São tipos variados, mas nenhum conseguiu tanta notoriedade como Jeca Tatu, personagem surgido nos dois últimos contos de Urupês: Velha Praga e Urupês, ambos de 1914. No primeiro, o caboclo é apresentado como uma “espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças”. Refratário aos movimentos do progresso, vive “encoscorado numa rotina de pedra, recua para não adaptar-se”.

Já no conto Urupês, ele surpreende ao deixar momentaneamente aquela posição habitual, de cócoras diante do fogo, para votar no Governo, mesmo sem ter a noção de que são aqueles políticos os responsáveis por sua situação deplorável. “É sobretudo a denúncia da submissão do Jeca aos interesses do Governo que em recompensa o despreza, junto à convicção de que a falta de saneamento básico é a causa de sua ‘lombeira’, que irá transformar o Jeca Tatu em personagem símbolo da identidade nacional que Monteiro Lobato estava interessado em construir”, nota Beatriz.

Curiosamente, tempos depois, quando o Jeca já se transformara em símbolo nacional (uma citação do caboclo feita por Rui Barbosa, então candidato à presidência da República, fez as vendas do Urupês dispararem), Lobato mudou sua visão e, em carta ao amigo Godofredo Rangel, em 1917, declara-se: “Virei a casaca. Estou convencido de que Jeca Tatu é a única coisa que presta neste país”.

A posição de Monteiro Lobato provocava reações distintas entre outros escritores. Os modernistas, em um primeiro momento, execraram seus textos, nítida reação às interpretações negativas que o escritor, como crítico de arte, fizera à pintura de Anita Malfatti, no célebre artigo publicado no Estado em 1917, A Propósito da Exposição Malfatti (Paranoia ou Mistificação?).

Lobato era até rejeitado como modernista, ainda que sua filosofia nacionalista se adequasse perfeitamente à daqueles escritores. É Oswald de Andrade, em carta enviada 25 anos depois a Lobato, quem faz o principal ‘mea-culpa’: “Esqueçamos a estética e a Semana de Arte e estendamos as mãos à sua oportuna e sagrada xenofobia”.

Em época anterior, também Lima Barreto interessou-se pela escrita de Lobato, especialmente ao destacar as qualidades visuais da estética naturalista-nacionalista do texto. “A sua roça, as suas paisagens não são coisas de moça prendada, de menina de boa família, de pintura de discípulo ou discípula da Academia Julien: é da grande arte do nervoso, dos criadores, daqueles cujas emoções e pensamentos saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela”, escreveu ele, em carta que consta na bem fornida Fortuna Crítica, que marca o final do volume.

CARTA DE OSWALD DE ANDRADE
O Jeca, você sabe melhor que ninguém, tem sobre o seu Cáucaso oleoso a pata gigantesca e astuta dos interesses… equívocos. Dão-lhe armas, mas negam-lhe os mananciais do sangue que movimenta as máquinas, ergue os aviões e equipa as cavalarias mecanizadas. Ele bem que é ajudado por uma ala simpática da América do Norte, à frente da qual está o cowboy Roosevelt e o camarada Wallace. Mas isso não basta. Lá mesmo, no solo dessa América medíocre e insípida que você conheceu, trava-se a luta entre os pioneiros do mundo melhor e o capitalismo de vistas curtas e unhas longas”

RESENHA DE LIMA BARRETO
A sua roça, as suas paisagens não são coisas de moça prendada, de menina de boa família, de pintura de discípulo ou …discípula da Academia Julien: é da grande arte do nervoso, dos criadores, daqueles cujas emoções e pensamentos saltam logo do cérebro para o papel ou para a tela. Ele começa com o pincel, pensando em todas as regras do desenho e da pintura, mas bem depressa deixa uma e outra coisa, pega a espátula, os dados e tudo o que ele viu e sentiu sai de um só jato, repentinamente, rapidamente. O seu livro é uma maravilha nesse sentido”

CRÍTICA DE CÂMARA CASCUDO (1921)
“Negrinha é o segundo tomo do Urupês. Ligam-se pelo mesmo vínculo de observação, crítica e ideias nossas, originais, sabendo… à terra, aos ares e às coisas do Brasil. Desviam-se da literatura que entulha as livrarias do Rio e São Paulo. Livrinhos bolorentos, imagens que a França nos impinge através de Calmann-Lévy, Lemerre, Vernier, de Carpentier ou o aristocrático Ferrand. Estamos nos debatendo numa turbamulta de nervosismos, simbolismos, cubismos, futurismos, aplicados às letras, cheirando a mofo e incenso – temas velhíssimos se batidos por três séculos de frivolidades parisienses”