NOTAS SOBRE UM TEXTO FICCIONAL DE TERE TAVARES
Por Cunha e Silva Filho Em: 19/07/2024, às 01H29
NOTAS SOBRE UM TEXTO FICCIONAL DE TERE TAVARES
Por Francisco da Cunha e Silva Filho
Mutismo
Essa terra possui excessos de aridez que duram séculos. Um velório sob o sol ardente indica uma placenta no pino de uma árvore seca. Terras que nunca sabem dos invernos e das vegetações. Muitas curvas depois, ele avista os canaviais e os cortadores que usam um uniforme escurecido pela queima inclemente, ateada à cana e à cana atada. Fuligem e fumaça — o ar irrespirável. Passa pela usina, o cheiro nauseante do que era transformado em combustível ou açúcar. Ele chega a São Miguel dos Milagres (somente malogros). Enormes caminhões transportadores de cana-gente desfilam à beira do caminho, dos dois lados dele, o são e o não; o dono das terras, os detentores da miséria e da indigência, aparentemente passivas e apavorantes. Ninguém se importa em melhorar de vida, ele não sabe se pelo longuíssimo tempo de submissão ou por gostar da 'proteção' de um Pai inumano que, por pouco que lhes dê, dá-lhes a sobrevivência, talvez a proteção ilusória para um infortúnio ainda maior — o de se acomodar à miserabilidade — todos pareciam gratos e felizes, comendo suas carnes assadas nas calçadas a menos de meio metro da estrada, ouvindo músicas pouco edificantes, dançando naquele ritmo e naquele rito sem grito e sem fim — um cordel de imensa tristeza; o desgarro em que aquelas gentes estavam [ele esperava que não para sempre] mergulhadas. Terras cuja geografia de enganos e derrotas jamais é palavra. (TERE TAVARES). Texto Pulicado na Revista “Escritoras Suicidas” – Edição 54 de Outubro de 2016.
O pequeno trecho acima citado, ”Mutismo,” da ficcionista paranaense Tere Tavares (rascunho de início de romance? novela ?, conto?), me lembra certas narrativas de nobres escritores brasileiros que escreveram sobre a aridez humana e a rigidez da terra englobados sob o rótulo de romance regional de 30.
Seriam aqueles que, na chamada literatura do Nordeste (e estou pensando em José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado), entre outros, falando de seca, de cangaço e de miséria física, natural e humana, construíram, separadamente, é claro, um número de romances, em que cada ficcionista relatava suas histórias com vivacidade de cores fortes e mesmo narrativas trágicas ou com tons épicos (caso de Fogo morto, de José Lins do Rego) posto que cada um escrevesse com a sua característica expressiva e estilística própria, sobre estagnação social e submissão, mandonismo, coronelismo, e sujeição, poder e escravidão, consciência da exploração e alienação individual ou coletiva.
Entretanto, o texto em exame, ao abordar ressonâncias dessa natureza temática, me dá indicações de que a autora esteja pensando em fazer algum desvio de percurso narratológico tanto na questão do que tem escrito ficcionalmente com textos colados a um repertório até demasiadamente metafórico com guinadas evidentes em narrativas introspectivas e de natureza filosófico quanto no tratamento da linguagem.
Ou seja, costuma narrar histórias que mais tendem a falar de abstrações do comportamento individual, coletivo e universal, de estofo fortemente erudito e clássico na sintaxe, na recorrência de cunho retórico, fértil em vozes ou citações alusivas tanto ao campo literário quanto a campos de outros saberes.
Arriscaria a afirmar até de um estilo - diria - retórico e arcaizante. Não se poderia dizer que algumas doses mínimas de enredo despontem aqui e ali, em que a voz do narrador ou narradora não se furte a, elipticamente, relatar incidentes próprios em moldes lineares e de possível compreensão do leitor, do médio ao letrado.
Não diria que a autora teria que fazer concessões ao seu próprio estilo de escrita literária, procurando abrir-se mais para um elemento que ainda me parece o grande estimulante do leitor: o enredo, ainda que não deixe de ser trabalhado por vieses modernos de elaboração artesanal complexa e não datada. A literatura é linguagem. Nunca é demais repisar.
Não vejo que a literatura ficcional, para ser de alta qualidade tenha que ser hermética, elitista, dirigida apenas a iniciados, a teóricos ou críticos literários. Contam-se nos dedos tipos de ficção como as de Franz Kafka, de James Joyce, de Guimarães Rosa, de Clarice Lispector. Tampouco penso que a grande literatura para ter essa estatura ficcional tenha que ser radicalmente subversora, revolucionária, experimentalista.
Até o próprio leitor sofisticado culturalmente não há de fruir continuamente – até o prazer cansa -, uma narrativa que tenha com frequência por pressuposto fulcral o de ser difícil, inacessível. Afinal, não é só o debruçar-se um escritor para refletir unicamente sobre a forma da linguagem literária e do modo como foi arquitetado um romance, uma novela, um conto que pode ser recorrente na construção de uma obra.
A literatura é linguagem, mas é igualmente tema e vida, beleza e prazer. E por vida estão incluídos vários elementos prevalentes e indispensáveis à criação literária. Poderia ser um exemplo desses uma concepção da ficção como um recorte metonímico da realidade total recriada pelo artista e conforme seus planos de opções temáticas e artifícios retóricos, desses que, na sua arquitetura de linguagem/forma, assuma maior peso de convencimento de que esses mundos inventados possam existir muitas vezes com força mais poderosa de realidades referenciais e conflitos humanos do que a mera realidade nossa de cada dia, a qual, por si só, não nos permitirá nunca propiciar com maior amplitude física, humana, estética, filosófica, religiosa uma superior compreensão da abrangência da existência.
Essa construção literária pode ser feita sob formas diversificadas de como o artista vai operar os recortes metonímicos, os quais redundarão ao leitor em realidades humanas mesmo sendo transpostas para regiões fantasmagóricas, surreais, mágicas, oníricas. E aqui poderemos falar novamente do chamado pacto narrativo de Phillipe Lejeune sem o qual não poderá haver uma espécie de acordo tácito entre o narrador e o leitor se este último não se deixar levar com naturalidade e espírito de aventura responsável e crítica a fim de adentrar o mundo - me perdoe o chavão -, maravilhoso da ficção.
Quer dizer, urge ganhar a confiança do narrador na medida em que ele, com pulso seguro, nos transporta a um “mundo real,” aquele “espelho de Carroll” de que uma vez, em conferência, ouvi do escritor J..J. Veiga, o mundo “possível” aristotélico da mímese ou noutra imagem deliciosa, as “figuras de papel” de Roland Barthes, quer pela desarticulação do arcabouço duradouro do realismo pictórico-fotográfico-naturalista da literatura ocidental do século XIX quer pelas novas maneiras de trabalhar a linguagem e a estrutura da ficção dos últimos anos.
Uma questão cabe, então, levantar-se: por que os movimentos de vanguarda europeia, no campo poético, não se mantiveram mais estáveis na história literária? Por que logo foram substituídos por outros e mais outros a ponto de todos, no seu conjunto, hoje pertencerem apenas a capítulos de ismos datados da história da poesia? Levando tal raciocínio para a área da ficção, poder-se-ia também indagar. Será que se sustentaria com o mesmo vigor inicial uma tentativa experimentalista de criar literatura semelhante aos diversos movimentos literários que já conhecemos? Será que nunca feneceria ou se esgotaria como técnica narrativa ou formas narrativas tornadas moda e, por conseguinte, seguida por vários escritores no país ou no exterior?
O que se repete por imitação e, ipso facto, por ausência de originalidade e de inventividade não redundará, ao final, numa forma datada? Uma obra de ficção que se restrinja sistematicamente só aos aspectos metaficcionais e descure do objetivo nuclear da ficção, que é criar vidas, situações e conflitos humanos, personagens, tempo, espaço, perspectivas narrativas, e propiciar uma visão ampla e pessoal das sociedades e dos grupos humanos diversos que a compõem, do mundo em transformação vertiginosa e dos novos conflitos agora surgidos como, por exemplo, o dos refugiados.
Uma obra de ficção deve ser encarada agora sob a perspectiva da globalização e de todas as consequências modificadoras trazidas por esse fenômeno de aproximação e intercomunicação entre povos, outrora distantes, e pelo seus complexos canais e meios de comunicação virtual e digital, sendo exemplos, as redes sociais, com as suas correlatas mudanças de comportamento dos indivíduos de todas as idades e do seu tempo de lazer, fragmentando a antiga e maior convivência interpessoal ao vivo com a chegada de aparelhos móveis como os celulares e outros mais complexos instrumentos de comunicação instantânea.
A obra ficcional, se permanecer à margem dessas transformações múltiplas, ficará à margem da pós-modernidade nos diversos campos do saber englobando o mundo político, jurídico, econômico, financeiro, histórico, geográfico, sociológico, antropológico, religioso, filosófico, linguístico, estético.
A obra ficcional não pode, portanto, prescindir das contribuições tanto das experiências formais e estilísticas da tradição quanto antropofagicamente acrescer-se de aportes renovadores de modos de vida, de costumes, de novas invenções, dos influxos decisivos das novas tecnologias e de visões diferentes que propiciem ao escritor redimensionar cenários literários tanto na linguagem dos novos tempos quanto nas formas de composição ficcional.
Retomemos o que de início esboçamos sobre o texto “Mutismo.” Sim, tudo me leva a crer tratar-se de uma guinada diferente tanto na linguagem menos clássica ou prenhe de ilustração erudita com o vezo comum entre autores modernos de poliglotismo no corpo da enunciação e alusões invocadoras de contextos literários diversos e geralmente estrangeiros, “Mutismo” recupera descrições limpas e objetivas, nomeando personagem ainda que não lhe dando ainda algum nome, porém nomeando-o apenas por um “ele.”
Pouco importa, contudo. Espaços já são claramente definidos - lugar seco, descarnado, ressequido, que nos leva logo a imaginar uma história fora do meio urbano, mas com sinais evidentes denunciando o campo largo, aberto das estradas, da vida rija e ao mesmo tempo contraditoriamente alegre com as paradas regadas a “carnes assadas,” com música “pouco edificante” e com dança dolente. É um cenário que se configura na euforia e na disforia combinadas com o trabalho braçal feito de alegria e tristeza associado à atividade presenciada pelo personagem “Ele,” traduzida na dureza do trabalho de uma usina de cana e de produção de açúcar e combustível. O “Ele” a avistar toda essa paisagem que lhe vai passando a perder de vista. É nesse intervalo de visão sem “invernos e vegetação” que o narrador se volta para dentro de si e divaga (ideologicamente) sobre senhores da produção e trabalhadores explorados. O discurso narrativo assume um tom mais veemente e denunciante, tão bem exemplificado pela antinomia do “são” e “não.”
O narrador é consciente das desgraças cometidas secularmente pelos senhores do poder e dos sofrimentos dos vencidos, o contingente de miseráveis. O “Ele” e o narrador se confundem, porque se há uma voz da enunciação há também uma visão do perspectivismo do “Ele,” provável narrador do relato. Tanto um quanto o outro têm consciência da exploração e da vida mesquinha dos trabalhadores, cuja interioridade ambiguamente atinge ou não os humilhados. Daí o narrador se reportar a eles como pessoas “aparentemente passivas e apavorantes.”
O texto “Mutismo” é bem mais solar do que o que tenho lido da autora. A meu ver, aqui existe decerto uma vontade de desfazer-se de “fábulas” e abstrações filosóficas ou oraculares das narrativas anteriores da autora. O texto tem o pé no chão. No entanto, aqui e ali, apontam notações bem inventivas de imagismo de cunho poético, “Um, velório sob o sol ardente indica uma placenta no pino da árvore seca. (grifos meus). Ou um quiasmo combinado com vocábulos parônimos como na frase: “... ateada à cana e à cana atada” Ou frases lapidares que vem poderiam estar formando linhas melódico-poéticas numa sequência de vocábulos com suas acentuações: ou seja, exemplos de párison ou assonância, no caso, a vogal anterior, oral, fechada, tônica “i”: “...naquele ritmo e naquele rito sem grito e sem fim...”. Ou nas aliterações formadas de oclusivas surdas: “...aparentemente, passivas e apavorante,” e constritivas, fricativas, labiodentais surdas: “Fuligem e fumaça...” Ou ainda no trocadilho antinômico e irônico-trágico: “...Milagres” X “...Malogros...” E, para concluir essas breves notas sobre linguagem, observe-se a frase final de “Mutismo”: (...) Terra cuja geografia de enganos e derrotas jamais é palavra.” (grifo meu) Este lexema se faz presente como palavra-chave na tentativa de refletir sobre a força descomunal do poder da terra, da posse e dos meios de produção diante do espaço secular da submissão.
A imagem do “Pai inumano” é o melhor momento de meditar sobre quem manda e quem obedece. O mutismo, como no exemplo emblemático do soldado amarelo de Vidas secas, é mais um paradigma da palavra “sequestrada” pelo poder público armado ou, cumpre reforçar, pela força das leis da violência secular do campo. Realmente: “Todos pareciam gratos e felizes.”
Francisco da Cunha e Silva Filho- em 18 07 19
PÓS-DOUTOR EM LITERATURA COMPARADA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ). DOUTOR EM LITERATURA BRASILEIRA PELA UFRJ. MESTRE EM LETRAS VERNÁCULAS PELA UFRJ. BACHAREL E LICENCIADO PELA UFRJ. PERTENCE À ACADEMIA BRASILEIRA DE FILOLOGIA (ABRAFIL) E Á UNIÃO BRASILERIA DE ESCRITORES9 DO BRASIL SEÇÃO DO PIAUÍ-PI. EX-PROFESSOR DE LITERATURA BRASILERIA,. LÍNGUA PORTUGUESA, LÍNGUA INGLESA E LÍNGUA INGLESA INSTRUMENTAL DA UNVERSIDADE CASTELO BRANCO, PROFESSOR TITULAR APOSENTADO DO COLÉGiO MILITAR DO RIO DE JANEIRO(CMRJ).
Francisco da Cunha
Foto; Lago Mucipal de Cascavel por Tere Tavares 2019