A curiosidade de muitos brasileiros e dos nossos consulentes sobre questões de língua portuguesa é originada e fortalecida pela consciência ou mesmo pela intuição de que a falta de um cabedal lingüístico pronto para uso nas diversas situações de interação social pode ser motivo de julgamentos desfavoráveis e depreciativos.

Em sociedade estamos sendo avaliados e avaliando o outro o tempo todo. É para fugir do estigma que paira sobre quem não sabe “falar direito” ou “escreve errado” que vamos em busca de mais conhecimentos sobre a língua, ampliando nosso capital lingüístico de modo a ficar a salvo do preconceito. O que é o preconceito lingüístico, afinal?

Do ponto de vista do discurso, o preconceito é uma discursividade que circula sem sustentação em condições reais. [...] O preconceito é de natureza histórico-social, e se rege por relações de poder, simbolizadas. Ele se realiza individualmente, mas não se constitui no indivíduo em si e sim nas relações sociais, pela maneira como se significam e são significadas. Não é um processo consciente, e o sujeito não tem acesso ao modo como os preconceitos se constituem nele (Eni Orlandi. Língua e conhecimento lingüístico. SP: Cortez, 2002).

“O preconceito é, portanto, o resultado do modo como se exerce o poder e não uma casualidade ou uma característica intrínseca da pessoa”, complementa Luiz P. Britto (Contra o consenso, 2003).

Então: não cessarão os preconceitos em relação à maneira como as pessoas se expressam verbalmente enquanto não houver a compreensão de que há variedades lingüísticas – e elas existem em face de uma sociedade estratificada, com cidadãos desigualmente aquinhoados: “A unidade e a diversidade de uma língua vêm do modo como a sociedade se organiza e reparte seus saberes e valores, particularmente os bens materiais” (Britto 2003).

Bourdieu reafirmou a existência de um valor extrínseco imputado ao discurso de acordo com o locutor, com a legitimidade que lhe é conferida em razão do capital econômico-social e cultural que detém, o qual lhe permite enfrentar com mais tranqüilidade as circunstâncias formais ou oficiais que exigem uma linguagem cultivada, mais polida e monitorada.

O prestígio social do falante, como salientou Bourdieu, se transfere ao seu discurso, tanto assim que quando uma forma lingüística nova se incorpora à atividade lingüística dos falantes prestigiados, ela deixa de ser considerada como “erro” (Bagno. Preconceito lingüístico, 2003). O erro, pois, não é absoluto, mas sim relativo ao meio ou ao grupo social de referência.

No Brasil isso resulta em que a maior parte da população tenha seu linguajar desclassificado e desqualificado sob qualquer hipótese. Com pouca escolarização formal e portanto pouco acesso à escrita, essas populações menos privilegiadas tendem, por óbvio, a conservar o uso das variedades ditas estigmatizadas.

“A sociedade pós-moderna, da era da informação, concentra o poder, cada vez mais, em quem domina os níveis mais elevados do saber e subjuga os que pouco ou nada conseguem gerenciar por insuficiência no uso da leitura e da escrita”, diz Nilcéa Pelandré (Ensinar e aprender com Paulo Freire: 40 horas 40 anos depois. SP: Cortez, 2002). Cria-se um círculo vicioso. Ainda que o indivíduo se esforce para “subir na vida” estudando e buscando as formas de prestígio, ele pode sofrer o efeito dessa ótica que marca e segrega.

Não admira, pois, que todos procurem conhecer e dominar a norma culta. Para o imenso contingente de alunos oriundos das camadas sociais desfavorecidas, esse conhecimento se prende à necessidade de que eles “possam dispor dos mesmos instrumentos de luta dos alunos provindos das camadas privilegiadas” (Bagno 2003). No caso dos demais, pela necessidade de alcançar ou manter um status social e profissional privilegiado que requer o uso da norma culta, essa que seria, no entendimento de Lucchesi (Norma lingüística e realidade social. In BAGNO 2002), constituída pelos padrões de comportamento lingüístico dos cidadãos brasileiros que têm formação escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços da cidadania.

 

 

*Diretora do Instituto Euclides da Cunha e autora dos livros “Só Vírgula”, “Só Palavras Compostas” e “Língua Brasil – Crase, pronomes & curiosidades”