Ninguém é pai de um poema sem morrer
Por Rogel Samuel Em: 16/12/2012, às 15H47
Ninguém é pai de um poema sem morrer
Ninguém é pai de um poema sem morrer
Rogel Samuel
No «Arranjos para assobio» (Editora Record, 1998, RJ), Manuel de Barros publicou um poema, que li na Internet, em Blocosonline, chamado «Sabiá com trevas», cujo IX diz:
O poema é, antes de tudo, um “inutensílio”.
"Hora de iniciar algum convém se vestir roupa de trapo.
Há quem se jogue debaixo de carro nos primeiros instantes.
Faz bem uma janela aberta uma veia aberta.
Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema enquanto vida houver.
Ninguém é pai de um poema sem morrer."
O poeta começa pela inutilidade do poema.
Um utensílio é algo que se usa, um utilitário, um objeto que serve para algum fim.
No «Novo manual de teoria literária» (Petrópolis, Vozes, 3a ed.), escrevi que, em primeiro lugar, é necessário distinguir objeto artístico de utensílio.
A arte não se pode identificar com um utensílio. A arte é gratuita, isto é, sua primeira finalidade é a própria arte.
Aliás, a arte não deve ter finalidade, porque ela é uma finalidade, em si mesma. É uma atividade lúdica, isto é, não tem objeto fora de si mesma. O que não quer dizer que não sirva para nada. Serve, por exemplo, para mudar o mundo.
Mas foi a sociedade moderna que estabeleceu que o padrão de uma realidade, ou de um determinado objeto, é sua necessidade, sua utilidade, isto é, os objetos são definidos não pelo que são, mas para que servem. Tudo, na vida social, é visto com respeito a um determinado fim. Todos os produtos humanos, todas as ações humanas (o trabalho, inclusive) estão assim definidos.
O poema fala da morte.
Seu mote é a morte.
A morte, entretanto, como o poema, não é um utensílio.
A morte é o fim de toda utilidade, de todos os valores, está além dos valores que visam a um determinado fim.
A morte nem é um valor.
Ela é ausência de.
O visar a um determinado fim significa inserir-se no meio da produção capitalista que objetiva a satisfação, a realização. A morte não. A morte é um não. E a arte, como a morte, não visa a um determinado fim, não visa à satisfação de uma finalidade (diz o poema), nem de necessidades.
A arte se expande no espaço da liberdade, talvez da morte. A liberdade é a espera de nada, ou seja, a arte, como a morte, não visa a nada, porque ela é em si sua própria finalidade, não há outra maior além dela mesma ou tão importante quanto ela.
Nada há maior que a morte.
E assim o poema.
Isto não quer dizer que a arte, a morte, o poema não tenha outra finalidade além de si mesmo. A arte e a morte podem servir, por exemplo, para educar, mas que a sua própria finalidade em si mesma já seria suficiente para justificar sua existência.
É liberdade. É criação.
A liberdade é a espera de nada, vige no espaço lúdico, isto é, gratuito, que não visa a nada além de si mesma e da conquista da liberdade. A morte é lúdica.
A atividade lúdica, o jogo, é gratuito. É uma atividade que não visa a um determinado fim outro que não a própria ação. Assim como a dança não visa a outra coisa senão ao próprio movimento.
Mas como eu ia dizendo, a morte é gratuita.