Cunha e Silva Filho


                         As amizades que começaram bem jamais devem ser interrompidas, a não que, da outra parte dela, não haja nenhum interesse pela continuidade da amizade. Ao longo da vida, já me ocorreram casos de pessoas, de  cuja amizade  privei, que, com o tempo, se foram sumindo n a poeira da estrada, ou melhor, da vida. Posto que procurasse tentar reatar a velha amizade, nenhuma sinalização verde havia do outro lado. O jeito era mesmo deixar pra lá. 
                        Soube hoje que um amigo, o Nico, faleceu no início deste mês, de um enfarte. Ainda cuidaram de levá-lo pra uma cidade com recursos médicos melhores, Guarapuava, no interior do Paraná. Contudo, lá não resistiu aos esforços de salvação. Aqui entre nós, Nico nunca deu bolas pra saber se tinha algum problema cardíaco. Uma vez, minha mulher, tirou-lhe a pressão. Estava altíssima. Comia de tudo. Comida pesada: churrasco, costela, salame, lingüiça no café da manhã, sempre servida com fartura.
                       Não aconselho a ninguém que passe muito tempo sem procurar os amigos e ver se estão bem, eis um conselho que gostaria de dar às pessoas.
                       Esse aspecto da realidade – a morte - , que é doloroso, mas que tem que ser encarado de frente, recebe um tratamento especial e com forte convencimento na ficção machadiana, sobretudo em Dom Casmurro (1900) Não sou um especialista do grande escritor, porém é flagrante um dado do enredo desse romance, a quantidade de mortes de personagens que, ao longo da narrativa, se vão  anunciando ao leitor. Faz-me pensar que, de propósito ou não, Machado de Assis (1839-1908), diante da quantidade de notícias de morte de personagens, parece lembrar ao leitor que a vida se tece de mortes no entrecruzamento de nossas relações de amizade ou mesmo de mero conhecimento das pessoas. Vejo que, com isso, o grande narrador, usando desse subterfúgio, almeja despertar nos homens, não sem um refinado humor quase mórbido, a consciência de que somos mortais, frágeis criaturas que a terra há de comer. Pulvis est, leitor, parece sussurrar-nos,  ao ouvido, Machado.

                   Conheci Nico, hipocorístico de Nicodemo Langner, seu nome de batismo, há uns  seis anos. Era uma cinquentão, um típico senhor do interior paranaense, da cidade de Irati, com aquele sotaque e expressões marcantes do homem do Sul do país. Homem simples, vida simples, pobre, mas de pobreza digna, cuidadosa de sua família, de seus filhos e netos, seus piás. Mecânico de carros, fosse automóvel, fosse caminhão, ou outro veículo motorizado. Não era um mero mecânico pé de chinelo       Era mesmo um mecânico com M maiúsculo, apaixonado pelo que fazia.
                   Na mocidade, fizera cursos na sua área de atividade. Trabalhara como mecânico de um grande empresa, se não me engano, a Volkswagen do Brasil, do seu estado. Ganhava bem, mas, tempo depois, preferiu trabalhar por conta própria. Diria melhor, quase própria, visto que, na sua oficina, não muito distante de sua residência, dispunha de auxiliares para tocar o seu negócio. 
                  Tinha seu próprio automóvel, um velho carro, um Chevette, bem cuidado, bem dirigido. Sentar-se, no banco de carona com ele na direção, era estar seguro de que nada de ruim me ia acontecer.
                  Por várias vezes, estive em sua modesta oficina, onde havia sempre carros para serem consertados, ou pintados de novo, ou serviços de lanternagem a serem feitos. Na verdade, Nico, à altura que o conheci, gostava mesmo era daquele serviço de lanternagem, para o qual usavam um outro termo que me foge à memória.
                 Descendente de alemães de mistura com polacos, Nico era um homem baixo, sanguíneo, de olhos verdes, meio calvo, bonachão, inteligente. Nico sabia de tudo sobre a cidade de Irati, berço natal do poeta Foed Castro Chamma, que me parece, anda meio esquecido, como tantos outros grandes poetas brasileiros ou não. O mal da literatura é que ela, com o tempo, se transforma num repositório de “esquecidos”. Por falar nesse poeta, de Nico recebi um presente, que é uma revista contando a história da cidade ( a cidade se tornou município paranaense em 2 de abril de 1907) e onde há uma nota jornalística não-assinada transcrevendo trechos do poeta referentes a uma reportagem sob o título “Foed Castro Chamma e a consciência mítica do mundo”, publicada na revista Leitura, do Rio de Janeiro, na década de sessenta.

               Os trechos transcritos dão ao leitor a idéia da alta qualidade do pensamento do escritor sobre o fenômeno poético, além de elucidar os seus processos criativos. A publicação da revista sobre Irati, de 1967, presta homenagem ao sexagésimo aniversário da cidade.
Volto ao assunto central da crônica. Conheci Nico porque há tempos comprei uma casa em Irati, pois, naquela época, nesse lugar morava meu filho mais velho. Até pensei que iria demorar-me lá por algum tempo, o que não ocorreu. É aí que entra a história do Nico, que era vizinho meu. A casa dele fora herança paterna. O pai possuía um bom terreno que, aos poucos, foi vendendo, para construções de casas modestas. Uma delas ficou pro Nico.
              Nico, muito espirituoso, era um verdadeiro contador de piadas dos mais variados tipos. Sua memória era excelente e, se não me engano, quando não tinha mais repertório de estórias pra contar, improvisava-as com muito talento e graça. Essa característica era a mais saliente de sua personalidade, e será aquela que guardarei nas minhas lembranças do amigo. E veja o leitor que sua vida pessoal não foi fácil. Perdera um filho muito jovem num acidente de moto quando voltava pra casa. Nico era daqueles pais que tudo faziam para que nada faltasse para a sobrevivência da família.
            Trabalhava pesado, com horário rigoroso na ida e volta, diariamente, pra sua oficina. Para a família, a falta será inestimável. Podia-se dizer que todos dependiam dele. Era mesmo um pai “arrimo” da família.          

           Na oficina, me explicava tudo sobre carro, como consertar, desmontar,  desalmogar partes do carro  batido, pintar, alinhar etc. Sua vida profissional era aquele mundo de peças, parafusos,  ferramentas,  carrocerias,  pneus, carros amassados, latas de tinta,  motores  pelos cantos  do lugar, enfim, inúmeros objetos  de trabalho  comopletamente deconhecidos pra mim.  Eu, que nada entendo de carro, nem mesmo pra dirigir, por educação ficava atento àquelas explicações expostas num jargão técnico que pra mim era grego. Mas, entre uma explicação técnica e outra, costumava contar uma piada ou falar sobre a cidade de Irati,  sobre  a política  local,  sobre o  seu povo,  sobre os seus defeitos e qualidades de lugar  pequeno,  onde  quase todo mundo se conhece. Conhecia a cidade como ninguém e era, ao que me parecia, bem relacionado, pois, nas mercearias, longe ou perto de sua casa, comprava   mantimentos,  com dinheiro  na hora ou até pra pagar depois. Tudo me indicava que Nico era um sujeito querido.
          Nico, mecânico, lanterneiro, grande contador de piadas, respeitoso, fundia traços do homem simples brasileiro, mas de um homem com visão dos fatos sociais. Amava a vida da forma que o destino lhe traçou. Tinha um sonho: ver os netos jogadores de futebol, não em Irati, mas nos times importantes de Curitiba ou mesmo dos melhores times brasileiros. Avô coruja. Levou consigo, contudo, os sonhos da Terra, do que aqui pôde fazer na sua vida modesta e digna. No céu, contará piadas que obviamente encantarão os anjos.