(Miguel Carqueija)


NAUSICAA: A PRINCESA MESSIÂNICA


Hayao Miyazaki criou, em Nausicaa, uma personagem que transmite bondade.


          O desenho animado japonês de longa-metragem “Nausicaa do Vale dos Ventos” (Kaze no Tani no Nausicaa), de 1984, foi criado por Hayao Miyazaki a partir da série gráfica, e vem a ser um dos pontos mais altos do cinema de ficção cientifica. É grandioso, belo, pungente e impressionante. Beneficiado por uma estética perfeita, é uma obra inesquecível.
          A protagonista (inspirada numa personagem de Homero na “Odisséia”) é a gentil e corajosa Princesa do Vale dos Ventos — um pequeno reino que sobrevive em meio às guerras e intrigas que envolvem o Império de Torumekia e outras potências ao redor. Nausicaa, uma garota linda, ágil e esguia, acostumada a voar com seu planador motorizado pelas correntes aéreas do vale (que impedem a chegada das emanações mefíticas das florestas), com uns quinze anos de idade, faz lembrar a figura do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupèry. E isto não será uma mera coincidência, visto que o Pequeno Príncipe simboliza Jesus Cristo e Nausicaa é uma pequena Messias do futuro.
          Passaram-se mil anos após os fatídicos “Sete dias de fogo”, uma guerra que destruiu a civilização industrial e tecnológica e derrubou a hegemonia do ser humano sobre a Terra. Agora subsistem reinos feudais acossados pelo Mar Podre — denominação dada à imensa floresta venenosa povoada por insetos gigantescos e mortais. Os esporos do chamado “fukai” invadem povoações inteiras, matando as pessoas e tudo amortalhando. Entretanto, nas pesquisas feitas em seu laboratório secreto, Nausicaa descobre que as plantas estão, pouco a pouco, purificando o solo, e só precisam de tempo para limpar o planeta do veneno acumulado. Mesmo o mestre espadachim que ensinou a Nausicaa a arte da esgrima, Yupa Sama, espanta-se diante das habilidades da menina, que consegue acalmar insetos furiosos — mesmo os gigantescos ohmus, maiores que elefantes — e em segundos domestica um pequeno e assustado esquilo-raposa que passará a acompanhá-la em seu ombro, e a quem ela dá o nome de “Teto”. “Que poder misterioso”, murmura o samurai.
         Mas a paz que ainda reina no Vale dos Ventos será em breve perturbada quando a guerra entre os impérios de Torumekia e Pejite chega até lá. Logo irão se confrontar duas filosofias opostas, uma que quer confrontar a Natureza (a Princesa Kushana, de Torumekia) e outra que deseja se entender com a Natureza (Nausicaa). Embora se respeitando mutuamente, as duas seguirão os caminhos que escolheram.
          “Nausicaa do Vale dos Ventos” é uma história que transmite bondade. Mesmo os principais vilões — Kushana e Kurotowa — acabam tocados pelo altruísmo da garota. Mas quem atina a verdade sobre Nausicaa é a velha cega, que alerta Kushana do perigo de agredir a floresta e os insetos. Nausicaa é, afinal, a pessoa da profecia, aquela que Deus envia para restaurar a perdida aliança entre a humanidade e a natureza.
          Ao longo do filme há cenas deliciosamente artísticas que mostram, por exemplo, Nausicaa voando em seu planador chamado “Mehve” (sempre com Teto no ombro) em meio à exuberância de uma floresta fantástica povoada de insetos gigantes, ou a sua passagem, com Asbel (príncipe de Pejite e irmão da falecida Restel, que morre no início da história), para o “andar inferior”, onde o ar e a água são puros, e as árvores, mesmo já mortas, continuam servindo à purificação do solo. “Estou feliz”, diz a menina, por conhecer aquele mundo oculto. E é comovente o amor puro, sincero e profundo de Nausicaa pela Criação. Perpassa toda a película uma mensagem ecológica e amorosa que faz lembrar São Francisco de Assis.
          Por outro lado, a estupidez humana, com as pessoas metendo os pés pelas mãos, aparece com clareza. Pejite e Torumekia disputam o corpo de um “deus-guerreiro” — um dos andróides gigantes utilizados na Guerra dos Sete Dias de Fogo, uma “descoberta arqueológica” que estavam tentando restaurar para utilizá-lo novamente como arma bélica. Os lideres de Pejite deliberadamente capturam um filhote de ohmu para provocar um estouro de insetos contra a guarnição de Torumekia estacionada no Vale dos Ventos. “A natureza está com raiva”, avisa a velha cega diante da insólita cessação do vento.
         A grandeza de Nausicaa manifesta-se em todo o seu esplendor quando a menina heróica, colocando-se ao lado do filhote ferido de ohmu, entrega a própria vida para salvar a humanidade em perigo pela revolta da natureza. Uma vítima inocente era necessária para acalmar a fúria dos insetos, e a morte e ressurreição de Nausicaa estão entre as cenas mais antológicas do cinema.


Rio de Janeiro, 6 a 26 de junho de 2012.