Nas esporas de um raio

[Carlos Nejar]

Jean Cocteau salienta, com razão, que se "reconhece um poeta - não pelo estilo - mas pelo  olhar". E o olhar de Diego Mendes Sousa é o fogo de suas metáforas. E se pelas mãos do verso se reconhece um autor, seu olhar está nas mãos, “por ter fogo em suas mãos”. E a frase é do andaluz García Lorca.

Esse olhar, todavia, assinala uma posição romântica no tratamento do amor e certo Simbolismo que permeia as metáforas (lembro dois títulos de livros anteriores: Fogo de Alabastro; Candelabro de Álamo), que mostra o retorno das escolas com nova face, dentro  do Modernismo.

Mas este livro fala de uma viagem. Ela vai de texto em texto e de autor em autor (os poemas todos dedicados). Não é uma  viagem, como a de Céline, “para o fim da noite”, mas como se vagasse em rodas de palavras, percorrendo  em verso curto, quase atomizado,  a  busca  do coração da terra,  da  pessoa que ama (e tem nome de estrela) e o da poesia. O núcleo central deste palpitar é a volta à Altaíba, lugar imaginário, que vislumbra a Parnaíba, no Piauí, núcleo da infância e o sagrado lugar do nascimento. 

Por isso, o poeta salienta, em beleza e profundeza: 

”Penetro/ no   chão/ abismal/  do grito/ da terra// no escuro / fundo/ da linguagem/ de Deus.//”   

Este é o sexto livro do poeta, que demonstra maturidade conquistada, com que  amor se infiltra nas paredes  dos  poemas. E ser poeta é redescobrir a infância no sonho, pois criar é estar na infância.

Sim, tal poesia é andarilha, tendo um ” passar com  os pés  no escuro”. Com litania  suave, andar de silêncios. E as imagens que brotam, uma das outras, como pegadas no chão do desconhecido. E se o sentido da  poesia  para Borges é “translação”, ou viagem de símbolos,  Diego tem nessa romaria, seus próprios mitos, com uma imagética peculiar, original . E a  linguagem não retira  a realidade, mas a desvenda. Usando a analogia como operação combinatória, em que se elabora como ato de inocência.  

Diz Octavio Paz que “a  poesia se ouve com os ouvidos mas se vê com o entendimento”. E essa criação, auditiva e visual se desloca no espaço do  tempo. Tendo o poeta a memória do coração, como queria Kierkegaard. 

Diego Mendes Sousa é forasteiro  de si  mesmo, por ser sua fronteira ou divisa, a alma . E tenta repetir no ritmo “ o lado   do   raio”. O raio da velocidade com que a luz se move entre as palavras. E uma velocidade  que assusta. Por ser a verdade assustadora.

Paul  Valéry afirmava que “ a  poesia é o desenvolvimento de uma exclamação”. Ou seja o espanto diante do universo. Permitindo o     aparente   descaminho, para inventar seu próprio som, hibernando dentro da palavra . É ali , o ninho, a cavidade, a  miragem, o carretel, a voz de chilreante  passarinho. Com entonação  singular, voz que identifica  um rosto.

 

E  são  tocantes e novas as  metáforas, a roupa dos poemas: “Assemelhou-se à neblina/ a doce lágrima da avó”...”O coração é uma tempestade/ a própria/ geada”... ”Aprendeu a alma/ nas esporas de  um raio”... ”Morrer:/ o longo dormir// O carretel do coração:/ o pássaro/ a  tornar-se   ausente.//”...  “Estampilhar  a   alma/ de sinos”. ... “O mar nunca bate/seus pesados cristais”...”sal /epifânico/ e purificado/ de nome “ (...)    (A luz) se apaga/na vaga/ do clarão/ e foge.” ...”A  universalidade / sela as estrelas” ... “A sublimação dos  animais/ é secreta”...

E secreta é a voltagem do ritmo, as elipses, cintilações,  o andar  de   faca  do  verso  e o verso de faca na alma.

Diego Mendes Sousa é um dos expoentes da poesia na Nova Geração geração, com aguda percepção crítica. Tem vocação de humanista, com sede do universal, que ele próprio acentuou,  “ a  universalidade (que) sela as estrelas”.

E  seu  livro,  Viagem à  Altaíba   é invenção  generosa, a Pasárgada   deste    bardo   da     Parnaíba . Se é  vertigem dos sonhos,  vertigem da infância  que se    recupera, também prova  que os poetas inventam a realidade , como é a realidade que inventa  os poetas.     

 

Morada do Vento, Vitória, Espírito Santo, 5 de janeiro de 2014.

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Carlos Nejar é escritor. Da Academia Brasileira de Letras e Academia Brasileira de Filosofia.