Não sou especialista, mas...

[Bráulio Tavares]

A gente está vivendo um momento curioso na História da Opinião.

De um lado, todo mundo quer emitir uma opinião sobre qualquer assunto. Desde o preço do café até o filme do Batman, desde a guerra da Europa até a corrida espacial. E vai logo dizendo:

– Não sou especialista nisso, mas...

Ela pede desculpas por, não sendo especialista, ter a ousadia de emitir uma opinião sobre aquilo.  Mas, por quê? Será que só especialistas podem comentar sobre um assunto? Será que para comentar sobre a invasão da Ucrânia eu tenho que ser especialista em guerra, ou em geopolítica da Europa Oriental?...

Para comentar um prato culinário, é preciso ser chef? Para dar palpite sobre um romance recém-publicado é preciso ter Mestrado em Literatura da PUC ou na USP?

Eu tenho um certo número de assuntos em que dou palpites, teorizo, defendo idéias, questiono opiniões. Sou especialista em qualquer um deles? De jeito nenhum. E não sou justamente porque há dúzias de assuntos que me interessam. Como poderia me especializar em dúzias de assuntos?

Meus interesses flutuam. Às vezes eu passo anos sem ler um romance policial sequer, sem ouvir baião, sem ver um “filme cabeça”. Depois, tenho uma recaída braba. Por que? Não sei. São interesses pessoais, emotivos. Minha vida intelectual é afetiva. A faceta profissional é mera consequência.

Meu conhecimento é cheio de lacunas, de falhas estruturais, de coisas lidas às pressas na juventude e não revisitadas depois... Tenho consciência disso. Por isso já me vi constrangido mil vezes quando fui apresentado “E agora, vamos ouvir o especialista em Cantoria de Viola, Braulio Tavares...” Se eu pego o microfone e confesso que não o sou, as pessoas vão comentar: “Gente, como ele é modesto...” e outros vão dizer: “Que sujeito hipócrita.”

Nem uma coisa nem outra. Meu conhecimento é alternadamente empírico e teórico. Eu vejo algo interessante, passo vinte anos lendo aqui e acolá, até que um dia meto os pés e penso: “Peraí. Esse negócio é muito mais sério do que eu pensava. Preciso estudar esse troço pra valer.” Aí passo alguns anos estudando, depois volto à “fruição sem compromisso”, lendo só como leitor, sem categorizar, sem questionar... Vinte anos depois, estudo de novo... E la nave va.
 
O que me faz aceitar convites para dar palestras ou cursos, inclusive recebendo cachê, é o fato de que eu convivo com esses assuntos há muitos anos. Mas convivo pensando. Mesmo não tendo descoberto nenhum teorema-de-pitágoras que possa classificar como de minha autoria, não me importo. Se algum ouvinte estiver interessado no tema, eu posso indicar alguns caminhos-das-pedras. E sou (imagino ser) um bom popularizador de idéias complexas. E não sou nem um pouco modesto; pelo contrário.

Meu objetivo é ser capaz de explicar um assunto a quem entende dele menos do que eu, e ser capaz de fazer perguntas pertinentes a quem entende mais.

Minha mentalidade é aquilo que na discussões acadêmicas se classifica às vezes como “mentalidade jornalística”: capaz de falar superficialmente sobre 257 assuntos, sem poder se aprofundar em nenhum. Acho isso ótimo. A sociedade precisa de pessoas assim. Desde que elas saibam que são assim, e para que servem.

O problema (acho) é quando a pessoa diz:

– Não sou especialista nesse assunto, mas vocês todos estão errados e quem sabe o que está acontecendo sou eu.

Hoje, depois das profundas mudanças estruturais nas nossas linhas de comunicação coletiva (internet, redes sociais, smartphones, aplicativos de grupos, etc.) estamos oscilando entre dois polos.

De um lado, o Império dos Especialistas, uma tecnoburocracia regida, a golpes de bibliografia e sarcasmo, por acumuladores de títulos e de portfólios. Ali, um cidadão comum hesita antes de abrir a boca e dar um mero palpite, pelo receio de ser humilhado em público, além de esmagado por toneladas de currículo.

Do outro lado, a Babel dos Opiniosos, uma arena cheia de pessoas de microfone em punho, todas falando ao mesmo tempo, e cada uma delas imbuída não apenas do direito democrático de ter opinião sobre o que quer que seja, mas também do dever de bradar essa opinião cem vezes por dia, e não admitir que alguém a conteste.