Cunha e Silva Filho

 

           Hoje, sábado, foi dia de feira do livro na Praça Saens Peña. Muita gente para lá e para cá numa calçada cuidando do seus interesses, ou fazendo compras ou por mero passatempo. No meio da calçada que dá para a Praça, um mundaréu  de camelôs vindos de muitos bairros, sobretudo da periferia, dos subúrbios. Os dias comuns já são cheios de gente. Dirigi-me, com minha mulher e meu filho mais novo, a uma farmácia, a mais procurada e que tem, naquele entorno, umas quatro filiais. Parece que todo mundo está doente, sobretudo os mais idosos.
         Os remédios estão caríssimos. Desconfio de que muita gente deixa de comprá-los porque não têm condições financeiras mesmo. Estão escasseando os remédios com preços mais baratos. Vão tomando somente os remédios mais vitais, como os de pressão alta, os de diabetes, os remédios contra dores da coluna e outras dores que acometem os que estão na faixa do que se convencionou chamar de terceira idade. Não gosto dessa expressão. Prefiro que me chamem de idoso.
         Mas, não é por essa razão que as pessoas vão também às farmácias. Vão porque elas oferecem produtos de beleza, xampus, desodorantes, remédios que podem ser vendidos sem receita, enfim, um infinidade de itens de que necessitam mulheres, homens e crianças.
         Encaminhamo-nos, depois, ao centro da Praça. Logo avistei as barracas de livros usados, os chamados sebos. Quase não havia compradores. Um grupo maior de gente estava se divertindo com a exposição de animais para doações, gatinhos e cães. Todos, em geral, muito fofos, sobretudo os gatinhos, a atração maior, particularmente, das senhoras, senhores, jovens e crianças. Em suas “jaulinhas" gatinhos, com os olhinhos verdes ou azuis e pelos de cores variadas, junto dos cãezinhos, fazem a festa dos visitantes anônimos.
         Estes, fazendo-lhes carinhos, conversando afetuosamente com eles, neles tocando, mostram esse lado profundamente humano que os adultos e crianças devotam aos animaizinhos de estimação, aos pet, palavra inglesa muito empregado para designar esse bichinhos. Nada contra os americanismos incorporados ao vernáculo. A língua é dinâmica e deve ser democrática, porém sem interferências sintáticas. Poucas pessoas os levam para casa como adoção. Alguns são até devolvidos de vez que não se adaptaram aos donos ou por uma outra razão pessoal
        Reparei que não havia guardas municipais nem vi polícia militar fazendo alguma ronda na Praça, onde, com frequência, senhoras, sobretudo idosas, são vítimas de menores assaltantes, os conhecidos pivetes. Todos eles com os olhos vidrados nas bolsas e joias das mulheres, celulares dos jovens “Pega ladrão” já virou um bordão.” Desculpe-me pela rima involuntária. A Tijuca é meio cercada por favelas, sem os eufemismos politicamente corretos e detestáveis, já que podem encobri subjetivismos hipócritas.
        Depois de olharmos os bichinhos, fui ver de perto alguns livros da pequena feira. Livros bem baratos, outros nem tanto. Às vezes, leitor, me dá uma repentina angústia de ver tanto livro. Há livros demais no mundo e o sentimento de impotência de nunca poder lê-los todos me deixa para baixo. Olhei para muitos que desejei comprar. Passei para outras barracas. Cada uma, em geral, representa um livraria da cidade.
       Sempre encontramos bons livros antigos ou menos antigos numa feirinha. Olhei, olhei, olhei até que dois me prenderam a atenção dado que o gênero nos quais foram escritos sempre me interessou: ensaio literário e biografia. No caso, o ensaio e a biografia são referentes ao mesmo escritor: Machado de Assis (1839-1908). Sempre o Machado, louvado ou criticado, escritor inesgotável, no país e no exterior, nos filões de seus temas e nas formas de abordagens de sua obra. Os autores: Fábio Lucas, do ensaio que nem mesmo havia lido, O núcleo e a periferia de Machado de Assis (Barueri, SP.: Editora Manoele, 2009, 166 p.).
        Lucas é um ensaísta e crítico a quem muito estimo pelo seu estilo claro e ao mesmo tempo profundo com que trata questões de literatura brasileira e temas de teoria literária. Li boa parte de seus livros. O outro livro é de um autor mais antigo, Gondin da Fonseca, o qual tem por título Machado de Assis e o hipopótamo. (6ª ed. Rio de Janeiro: Livraria São 1974, 326 p.).
      Gondin da Fonseca (1899-1977) foi escritor, jornalista, biógrafo e historiador. Nasceu e morreu no Rio de Janeiro. A obra dele que hoje comprei na feirinha de livro foi bastante lida e elogiada por gente da importância de Astrojildo Pereira (1890-1965)), crítico de orientação marxista. De resto esse crítico eu o li muito na velha revista O Cruzeiro. Lá ele assinava uma coluna de cujo nome não me recordo agora.
       Segundo leio na primeira orelha do livro, a citada obra de Gondin foi muito bem vendida, mas, estranhamente, não teve a repercussão no país por parte da crítica especializada. Por outro lado, se aqui não foi tão incensada, o foi no exterior, como em Portugal e na Espanha, países em que recebeu boa acolhida da crítica. O exemplar que comprei não teve leitores, pois ainda tem algumas páginas fechadas, o que significa que não foi lido por ninguém. Para minha alegria, serei o primeiro leitor dessa obra do biógrafo.
       Diante desse silêncio da crítica, no que tange à biografia de Gondin da Fonseca, fui procurar, na extensa relação de bibliografia passiva machadiana, na utilíssima Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira, de Otto Maria Carpeaux (Rio de Janeiro: Ediouro, s.d., com um apêndice de Assis Brasil, incluindo 40 novos autores, 470 p.) a citação do livro de Gondin. Salvo engano, não a encontrei. Por que – pergunto – essa omissão de uma obra que teve, novamente salvo engano, seis edições com vendas “normais” de quarenta mil exemplares?!
       Na referida orelha da biografia de Machado de Assis escrita por Gondin, o autor informa que o biógrafo não era dado a “badalações.” Não se exibia nem dava sinal de sentir o prazer do sucesso como tanto se vê sobretudo hoje em dia entre autores. Um temperamento assim explica de alguma forma o afastamento de um livro ou é porque houve a intenção de lhe abafar a obra sobre o Bruxo do Cosme Velho? Resta pesquisar.
       Como eu mesmo ainda não li a obra de Gondin, essas indagações têm apenas um caráter preliminar sobre o assunto que fala  tão de perto do destino dos livros de alguns autores e do silêncio sepulcral que pesa sobre a sua pessoa literária. O destino do livro, em relação à crítica, é tema polêmico e cheio de nebulosidades tanto da parte do universo editorial, quanto da parte dos críticos, da história literária e da produção literária de um país.