Mudança social e ressentimento – I
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 23/02/2014, às 19H07
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
As revoluções alimentam muitos ressentidos e criam outros.
No contexto da expansão napoleônica da Revolução Francesa, que aburguesou o mundo, muitos dos nobres, bem antes de serem desalojados em cada um de seus países, já estavam se tornando ressentidos. Na prática, estavam cativos da burguesia mais rica que lhes emprestava dinheiro a juros nada confortáveis. Quando finalmente as velhas cortes acabaram, muitos nobres se transformaram em parasitas sociais ainda mais que antes e, não raro, criaram alimento para grupos de fracassados que nunca puderam se adaptar ao novo mundo, o da “sociedade de mercado”.
Mas eles não foram os únicos ressentidos! Os vitoriosos políticos tinham entre eles muitos ressentidos que, enfim, nunca se livraram do ódio interno, da inveja e de todo tipo de sentimento corrosivo que é, não raro, o motivo torpe e não revelado para se insurgir contra ordens sociais. Em alguns lugares, essas pessoas, uma vez no comando político, de fato ou apenas achando possuí-lo, mais se preocuparam em ofender os antigos mandatários que aproveitá-los quanto ao que sabiam de bom a respeito do velho mundo, necessário ao novo.
Isso não foi diferente em revoluções de outro caráter, como a de 1917 na Rússia. Existiam intelectuais com educação aristocrática entre os revolucionários socialistas. Também existiam militares da velha guarda que aderiram a Lênin, e que eram altivos e tinham orgulho de sua coragem. Junto deles havia uma grande massa popular nada sabia de jogos palacianos e cortes, e queria apenas uma vida melhor. Mas, no interior do partido comunista não faltaram aqueles que eram os adeptos do que Marx denunciou e condenou como sendo o “comunismo de inveja”. Atuaram de modo mesquinho, semelhante a certos parentes que Napoleão foi colocando em cada país dominado. Estavam mais preocupados em tirar das pessoas, para virarem o jogo da humilhação, que construir novos tempos alvissareiros. Do lado perdedor os que podiam ficar ressentidos, na maior parte, foram para longe ou acabaram mortos, pois Lênin foi imperdoável. Diferente do que ocorreu na Revolução Cubana muito depois, os perdedores não puderam fugir para Miami e ficar organizando a eterna chama da contrarrevolução.
Entre os que fugiram da Rússia bolchevique estava a família nobre e rica de Nabokov.
Não digo que Nabokov foi um ressentido russo – jamais! Todavia, talvez ele não tenha realizado solitariamente essa proeza, a de se livrar do vírus maldito. Talvez ele tenha conseguido isso por meio de uma companheira, a sua literatura. Creio que ela o tenha salvado. Ele expiou o ressentimento criando contos diversos de russos que se vingaram de bolcheviques na Alemanha e outros lugares – mas não só. Ele conseguiu ficar rico, deixando de lado o trabalho na universidade, e o fez por meio de ser uma das maneiras mais indicadas na América, que é a de escrachar seu modo de vida, ou sua ignorância. Aliás, só a América permite isso. De fato, Lolita foi um brilhantíssimo escracho contra tudo que era e é o rousseauísmo da América, e contra todo e qualquer gesto não russo e não aristocrático de ser.
Nabokov conseguiu fazer tudo aquilo que o rousseauísmo (não propriamente Rousseau, é claro) condenou ou condenaria. Colocou Lolita sabendo muito mais de sexo que aquilo que uma mãe ou freira americana admitiria, considerando a idade da garota. Fez de Lolita uma criança sem qualquer traço da “boa natureza” que Rousseau disse (simbolicamente, é claro) que iríamos encontrar em cada enfant. Ela se fez como quem deveria ser educada não pelo americanismo pedagógico, mas pela educação tradicional da velha Europa. Para arrematar, Nabokov se deu ao luxo de ser um bon vivant, um tipo de pesquisador um pouco excêntrico, alguém que podia escrever um tratado original sobre borboletas só como entretenimento. Aliás, ele as caçava e as espetava, montando coleções enormes, coisa que hoje traria o desconforto de nossa sensibilidade aguçada pelos “direitos dos animais” e “consciência ecológica”, especialmente se pensamos nele como um professor de literatura. Esses modos de ser velho num mundo novo, e legitimamente poder fazer isso (apesar dos protestos) quase que como uma pirraça, o fez suportar ficar para sempre fora da Rússia e vê-la, a cada dia, sendo delapidada pelos bolcheviques e suas “modernizações”.
Mas, nem todos são do tipo Nobokov! Nem todos sabem da arte da sublimação e da companhia que a cultura faz para amantes dessa arte.
Quando há uma revolução, uma boa parte das pessoas segue em frente, por razões variadas nada importantes, e muitas vezes sem razão alguma. Mas há os vitoriosos e perdedores que não podem seguir em frente, não encontram nada porque nunca tiveram qualquer dom. Estes, então, vão tentar usar da revolução para justificarem tudo, suas façanhas de êxito político e seus fracassos pessoais. No fundo mesmo, no casos destes, só fracassos.
O burguês que nunca soube dançar nos bailes da velha corte continuará desajeitado nos novos bailes, mesmo com a mudança da música e da dança. Levará anos para que possa mudar a etiqueta de tudo e gerar novos movimentos corporais, criando um mundo em que ele poderá se sentir bem, capaz de fazer o herdeiro do nobre não ter espaço e ensinar o operário que ali não é o seu lugar. Essa situação renderá, por várias gerações, a manutenção do ressentimento nos que entraram na revolução já ressentidos, ainda que vitoriosos politicamente. Sabemos o quanto há de gente magoada que, mesmo obtendo todo sucesso no novo regime, não alcança aquele sucesso que gostaria de ter obtido, talvez até desnecessário. Mutatis mutandis o mesmo ocorreu após 1917 na Europa. Mesmo onde o comunismo não venceu politicamente, a social democracia, com base em partidos marxistas e com políticas keynesianas, tornou-se uma enorme força e trouxe novos hábitos, comportamentos e valores para o mundo burguês, afrontando-o internamente em vários aspectos e invejando-o em outros.
Vivemos isso hoje, mas de modo diluído, nas lutas sociais contemporâneas: a cada mudança social em cada país e em cada região interna, por mínima que pareça, não há algo que possamos chamar com o nome tradicional luta de classes, no sentido que o esquema consagrado pelos teóricos marxistas, mas há, certamente, confrontos a respeito de como recriar o campo subjetivo hegemônico. O que deverá ser o sujeito? Se é que ainda vamos precisar desse conceito.
Em muitos lugares há a aposta na educação, para que todo tipo de gente, após uma revolução, se readapte à nova vida e deixe os ressentimentos dos pais e avó com os pais e avós. Uma espraiada escola básica de boa qualidade e acessos reais às boas universidades podem trazer um sentimento de pertencimento à nova vida. Ter um trabalho de cunho menos braçal, mais intelectual, pode ser a chave de sucesso – como é a lição que a América quis ensinar ao mundo, principalmente à Europa. A América e só a América criou uma rede de universidades ricas capaz de mudar o mundo. De certo modo, o que Nabokov fez individualmente ele próprio, já estava sendo seguido como caminho indicado para os indivíduos americanos, e continua sendo: para a vida moderna, em que capitalismo e comunismo vão ficando para escanteio, as novas subjetividades demandam um engajamento em redes narrativas ricas, satisfatórias, capazes de repor sentidos – recolocar ou colocar novos objetivos para nós todos.
Os países que passam por transformações econômicas e políticas e não passam por uma nova educação, mais rica, não emburrecedora e mais aberta para todos, têm poucas chances de colocar seus ressentidos de lado. Na verdade, estes tendem a se tornar um grupo bem maior que o que se pode suportar em uma sociedade progressista. São pessoas que não conseguem saber a que vieram e, então, imaginam que vieram para reproduzir os ódios de pais e avós, pois isso é o que lhes restou como elemento de identidade.
Cada movimento social de minoria, hoje em dia, se pudesse aprender isso, faria muito. Defensores de pobres, movimento gay, mulheres (feminismo), movimento negro, movimentos étnicos e grupos variados de outras identidades poderiam pensar nisso – seriamente. Mas, enquanto não souberem integrar suas narrativas nas grandes narrativas que vão sendo tecidas para além de seus mundos, não conseguirão colocar sentidos novos, e reproduzirão o ressentimento que está, em parte e no todo, na base de suas identidades sociais. Ganhar mecanismos educacionais para construir essas narrativas é fundamental. A escola é um desses instrumentos. As pessoas deveriam já saber disso. Algumas sabem. Outras não sabem nada. Nada de nada. Não sabem como que Nabokov conseguiu fazer narrativas de modo que a própria narrativa de sua vida se reinserisse nas grandes narrativas do novo mundo que ele viu se construir durante o século XX.
Minorias que não aprenderam a lição de Nobokov são minorias próprias de protestos vazios e, infelizmente, presa fácil do sentimento fascista.
© 2014 Paulo Ghiraldelli, filósofo.