"A arte existe porque a vida não basta."

           FERREIRA  GULLAR                                                

           Cunha e Silva Filho

          Ninguém morre sozinho. Quem morre mata também em parte o coração dos que ficam. Este ano, pra mim, foi um dos mais sombrios, um dos mais doloridos, um dos mais sofridos. Agora mesmo, meu filho Francisco Neto, muito entristecido, consternado, me telefonou informando-me do falecimento do imortal poeta nascido em São Luís, Maranhão.

          Agora mesmo também me recordo do ano de 1968, ano em que faleceu outro grande poeta brasileiro, Manuel Bandeira (1886-1968). Este ano de 1968 está ainda associado à data do nascimento do meu filho mais velho, acima referido. As minhas primeiras lembranças de Ferreira Gullar (1930-2016) remontam aos anos, sobretudo, de 1964 e 1965. Morava, então, na CESB (Casa do Estudante Secundário do Brasil), situada no centro velho do Rio de Janeiro.

        Sobre esse “lar querido,” já me reportei no meu livro de memórias, Apenas memórias (2016). Contudo, o que me prende a esta coluna de hoje é o desaparecimento do poeta Gullar, o qual se mistura às primeiras notícias de que tive naquele tempo do poeta do Poema sujo (1976). Meus colegas e amigos moradores da CESB me relatavam a presença de Gullar em palestras e em envolvimentos políticos contra a ditadura militar recém-instalada no país.

        Falava-se muito da militância ideológica de Gullar e falava-se também de sua poesia ainda não tão conhecida por muita gente. Uma vez, me convidaram para uma palestra de Gullar.Só algum tempo depois, por volta do meu tempo de universitário de Letras, começava a me interessar pela poesia de Gullar. As ideias vão fluindo à medida que progredimos no tempo presente da escrita e me vem á tona aquele dia em que Gullar foi fazer uma palestra na Faculdade de Letras da UFRJ.

        O auditório estava apinhado. Durante a palestra, Gullar leu o poema “Filhos,” uma cópia do qual foi distribuída aos presentes. Esse poema comento num dos capítulos do meu citado livro de memórias. É um poema enternecedor e ao mesmo tempo uma reflexão densa sobre o fluir do tempo relacionado com o crescimento dos filhos do poeta e, por extensão, de todos os filhos de pais que vivenciaram situações semelhantes.

        Veja-se a pungência, neste poema, nos seguintes versos “(...) Só então/ me perguntei/por que/não lhes dera/maior atenção/se há tantos/e tantos anos/não os via crianças/já que//agora/estão os três/com mais/de trinta anos”. O poema em foco foi dedicado ao filho Marcos.O meu capítulo de memórias foi dedicado aos meus filhos Francisco Neto e Alexandre. A personalidade do poeta Ferreira Gullar, nos últimos anos, conheceu o prestígio de que gozava sobretudo como poeta, de tal sorte que o seu nome está indissoluvelmente vinculado às vanguardas da poesia brasileira, primeiro como um voz que, por suas característica renovadoras temática e formalmente, prenunciava, com o segundo livro Luta corporal (1954), que lhe granjeou renome, o movimento do Concretismo de 1956 e, em seguida, como um dos introdutores da poesia neo-concretista (1959) que foi a sua fase de não aderência ostensiva mais ao Concretismo.

        Sua obra de estreia em poesia chama-se Um pouco acima do chão (1949). A poesia neo-concreta, para simplificar a sua complexidade teórica, voltava ao verso e ao poema preocupado com a subjetividade, com o discursivo, com a memória pessoal, o valor atribuído ao verso popular, ao cordel, não mais preso a elementos objectualistas do radicalismo verbi-voco-visual concretista do grupo de São Paulo tendo à frente, entre outros, Haroldo de Campos (1929-2003), Augusto de Campos e Décio Pignatari (1927-2012)

       A alta poesia, porejada de humanidade, suplantaria não só a poesia passadista, mas os formalismos derivados de uma época sob o signo da cibernética. Seria, grosso modo, aquele lirismo por que tanto se batia José Guilherme Merquior (1941-.1991) e que ele via estar presente na poesia de Manuel Bandeira. Ferreira Gullar ficará sempre lembrando poeticamente pelo livro Poema sujo que causou repercussão na história de sua produção poética. Ficará também marcado pelo papel saliente que teve nas pesquisas sobre o campo das artes plásticas, do ensaísmo, com obras como Vanguarda e subdesenvolvimento (1969) e Cultura posta em questão: vanguarda e subdesenvolvimento (2002).  ,  

       Ficara ainda conhecido por seus trabalhos no teatro, na televisão, no cinema, na literatura infantil. E, finalmente, por sua incansável produção de cronista, gênero que me inspirou este meu artigo, principalmente a partir de sua coluna iniciada e terminada na Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, aos domingos que, por sinal, tornou-se para mim leitura obrigatória acompanhando, desde o início, os seus inúmeros artigos repartindo-se seus temas entre o retrato do quotidiano da vida, com forte teor poético, os assuntos sobre artes e poesia, quase beirando a ensaio e aqueles dedicados a análises da política brasileira nos últimos anos, com algumas incursões na política mundial.

       Gullar sobre este último tópico foi um corajoso, independente e acerbo crítico do lulopetismo, da podridão de nossa política, sobretudo a partir dos escândalos do Mensalão do Petrolão do desastroso governo Dilma, das revelações feitas pela Operação Lava-Jato e de outros males do Brasil e da política mundial.

       Na juventude tendo sido combatente da ditadura militar, foi preso político viveu, por algum tempo, exilado na Argentina, no Chile e na Rússia mas, como todo homem sensato e evoluído, embora tendo pertencido ao Partido Comunista Brasileiro. Com o tempo foi amadurecendo sua visão política e, nos últimos anos, revelou-se um intelectual politicamente ativo na imprensa, na crônica, verberando os erros da comunismo, da esquerda, os erros e defeitos da direita, das falhas do capitalismo e a constatação de tudo isso o levou a uma posição equilibrada, conscienciosa, de ver que tanto a esquerda quanto a direita possuem deploráveis falhas quanto praticadas com radicalismos.

       Penso que a sua visão política atual seria a de um escritor a quem os regimes de governos só valeriam a pena se considerassem a realidade social, econômica, histórica, política, libertando-se do fanatismo cego, do farisaísmo e da hipocrisia de um sociedade com pretensões à igualdade completa que só caberia nos sonhos malogrados da esquerda.

       Tampouco para ele haveria mais justiça com uma direita que tivesse somente por referência os lucros exorbitantes e nefastos do capitalismo que, por assim dizer, provocam uma forma de esquecimento dos valores humanos e da liberdade de expressão em todos os setores da vida em sociedade. Sua primeira crônica, salvo engano meu, tem o título de “Resmungos.” Sua penúltima crônica publicada no domingo passado, na Folha de São Paulo, com o título em tom profético, foi “Trump: après moi, lei déluge.”

      Sua última crônica (penso que seja a última que é publicada naquele jornal, saída hoje, 4 de dezembro, tem por título “Solidariedade, ” uma crônica que reafirma as suas convicções expostas na penúltima, quer dizer, desaprova a pretensão utópica do comunismo como forma de melhorar a vida das pessoas e torná-las iguais e o capitalismo que espolia as pessoas e as torna mais desiguais. Entretanto, há um meio termo que,segundo ele, evitaria as falhas dos dois sistemas de governo: um capitalismo mais justo, que saiba reconhecer o bem-estar da sociedade em suas diferenças de aptidões e de possibilidades. O erro grave é a procura do lucro encravado no egoísmo de uns poucos ou de uma só pessoa.

        É possível ser rico sem ser egoísta e Gullar cita o nome de Bill Gates que deixou a direção de seus negócios e passou a dirigir uma “entidade beneficente.” Pode-se dizer que essa última crônica da sua coluna no caderno Ilustrada é um gran finale de sua alta capacidade de síntese e acuidade de escritor, de jornalista, de roteirista de televisão, de poeta, de cronista, de crítico das artes e de um ser humano com o pé no chão. Não sendo  Gullar religioso, ainda assim, termino este texto de homenagem pedindo a Deus que  o abençoe pelo período de  sua existência entre nós que amamos a  poesia e a literatura em geral.