Morre Mário Benedetti
Em: 17/05/2009, às 18H25
Morre o escritor uruguaio Mário Benedetti, aos 88 anos
Há 11 dias, o escritor e poeta havia recebido alta hospitalar após internação por uma doença intestinal
AMOR DE TARDE
(Mario Benedetti)
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são quatro
e termino a planilha e penso dez minutos
e estico as pernas como todas as tardes
e faço assim com os ombros para relaxar as costas
e estalo os dedos e arranco mentiras.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são cinco
e eu sou uma manivela que calcula juros
ou duas mãos que pulam sobre quarenta teclas
ou um ouvido que escuta como ladra o telefone
ou um tipo que faz números e lhes arranca verdades.
É uma pena você não estar comigo
quando olho o relógio e já são seis.
Você podia chegar de repente
e dizer "e aí?" e ficaríamos
eu com a mancha vermelha dos seus lábios
você com o risco azul do meu carbono.
MONTEVIDÉU - O escritor uruguaio Mario Benedetti morreu neste domingo, 17, em Montevidéu aos 88 anos, informaram à Agência Efe fontes ligadas à família do autor. Benedetti, que tinha um estado de saúde bastante delicado, estava em sua casa, na capital uruguaia, quando morreu.
No ano passado, o escritor foi hospitalizado quatro vezes em Montevidéu devido a diversos problemas físicos.
A primeira vez foi entre janeiro e fevereiro de 2008, após sofrer uma enterocolite que fez com que ficasse desidratado. Já em março ele foi internado com problemas respiratórios, enquanto a terceira vez se deu em maio do ano passado por causa de um quadro clínico instável geral. Após a última vez em que Benedetti foi hospitalizado, de 24 de abril até 6 de maio, o escritor recebeu alta e voltou para casa, após 12 dias internado pelo agravamento de uma doença intestinal crônica.
Benedetti escreveu mais de 80 livros de poesia, romances, contos e ensaios, assim como roteiros para cinema. Ele já recebeu os prêmios Ibero-americano José Martí (2001) e Internacional Menéndez Pelayo (2005).
A última obra publicada, o poemário "Testigo de uno mismo", foi apresentada em agosto do ano passado.
Antes da última entrada no hospital, Benedetti estava trabalhando em um novo livro de poesia cujo título provisório é "Biografía para encontrarme".
Já há algum tempo o famoso escritor não se apresentava em público e concedia poucas entrevistas à imprensa, mas continuava trabalhando em suas obras diretamente de Montevidéu.
No ano passado, publicou "Testemunha de um mesmo", e em setembro disse a jornalistas que estava terminando um livro de poesias chamado "Biografia para encontrar-me".
Sua carreira literária começou em 1949 e chegou a fama sete anos depois ao publicar "Poemas de escritório", sobre a rotina de trabalho. Desde 1992, tem lançado quase uma obra por ano.
(Com agências internacionais)
Nasceu no Uruguay em 1920. Grande conhecedor da América Latina e de sua literatura, sobre a qual escreveu muitos trabalhos críticos, como Letras do continente mestiço. Dramaturgo, poeta, ensaista e novelista, Mario Benedetti logrou boa parte de sua popularidade com seus contos: Esta manhã (1949), A última viagem (1951), Montevideanos (1959), A morte e suas surpresas (1968), Geografias (1984), e outros - nos quais captou aguda e sutilmente os pequenos fatos da vida cotidiana do homem comum de seu pais. Seu sólido prestígio de escritor repousa também em sua poesia - são célebres seus Poemas de escritório (1956) - e suas novelas, entre as quais há transcedido sobre tudo com A trégua (1960).
A PONTE
Para cruzá-la ou não cruzá-la
eis a ponte
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
trago comigo oferendas desusadas
entre elas um guarda-chuva de umbigo de madeira
um livro com os pânicos em branco
e um violão que não sei abraçar
venho com as faces da insônia
os lenços do mar e das pazes
os tímidos cartazes da dor
as liturgias do beijo e da sombra
nunca trouxe tanta coisa
nunca vim com tão pouco
eis a ponte
para cruzá-la ou não cruzá-la
e eu vou cruzar
sem prevenções
na outra margem alguém me espera
com um pêssego e um país
(De Preguntas al azar – 1984-1985)
SOU MEU HÓSPEDE
Sou meu hóspede noturno
em doses mínimas
e uso a noite
para despojar-me
da modéstia
e outras vaidades
procuro ser tratado
sem os prejuízos
das boas-vindas
e com as cortesias
do silêncio
não coleciono padeceres
nem os sarcasmos
que deixam marca
sou tão-só
meu hóspede
e trago uma pomba
que não é sinal de paz
mas sim pomba
como hóspede
estritamente meu
no quadro-negro da noite
traço uma linha
branca
(De La Vida ese Parentesis)
POR QUE CANTAMOS
Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel
você perguntará por que cantamos
se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha
você perguntará por que cantamos
se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro
você perguntará por que cantamos
cantamos porque o rio está soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino
(De Retratos y Canciones)
EM PÉ
Continuo em pé
por pulsar
por costume
por não abrir a janela decisiva
e olhar de uma vez a insolente
morte
essa mansa
dona da espera
continuo em pé
por preguiça nas despedidas
no fechamento e demolição
da memória
não é um mérito
outros desafiam
a claridade
o caos
ou a tortura
continuar em pé
quer dizer coragem
ou não ter
onde cair
morto
(De A Ras de Sueño, 1967)
Tradução de Julio Luís Gehlen.
Rio de Janeiro: Record, 1988