Mitologia, terror e ficção científica
Por Miguel Carqueija Em: 10/06/2013, às 14H37
(Miguel Carqueija)
“A âncora dos Argonautas” (Miguel Carqueija) — Coleção Fantástica, 2 (julho-1999)
Capa: Cerito — Prefácio: Cesar Silva
Esta noveleta é uma espécie de “fanfic”, tipo de ficção onde o autor aproveita personagens ou outros elementos pré-existentes em universo ficcional criado por outro. No caso especifico trata-se de criações de H.P. Lovecraft (1890-1937), escritor norte-americano que criou uma verdadeira cosmogonia horrorífica em torno de um livro fictício e sinistro — o Necronomicon, ou “Livro dos Nomes Mortos” — e de monstruosas entidades cósmicas conhecidas como os “Grandes Antigos”, que viriam de outro universo e teriam exercido grande poder sobre a Terra, em passado remoto.
“A âncora dos Argonautas” relaciona o culto aos Grandes Antigos com uma feiticeira da mitologia grega, Medéia, que viajou no celebre navio Argos. Medéia teria colocado um poderoso feitiço na âncora e esta, atravessando incontáveis gerações, ainda estaria servindo, no futuro, aos seguidores do “Grande Cthulhu”, o monstro com tentáculos de polvo e asas de dragão, um dos Grandes Antigos, e que aparece na famosa novela de Lovecraft, “O chamado de Cthulhu”.
A novela brinca com a idéia de opor a inocência juvenil e feminina à completa malignidade de Cthulhu e seus adoradores. Íris e Aurora, gêmeas de 13 anos, têm suas fragilidades de adolescentes; mesmo assim são dotadas de poderes assombrosos e surpreendentes e os empregam com segurança, o que as torna aptas a enfrentarem as forças das trevas. E o fazem em meio a atitudes surpreendentes e tiradas humorísticas. A história também apresenta uma linha católica, onde o Papa é alvo da perseguição dos adoradores das trevas, que desejam sacrificá-lo a Cthulhu — conspiração que motiva a dramática interferência das garotas.
A trama também penetra no terreno da ficção cientifica, já que tudo se passa num futuro distante onde a humanidade viaja pelo Sistema Solar e mantém colônias em alguns mundos. Entretanto tudo se passa na Terra, e no Brasil, ainda que em locais fictícios. As duas garotas têm um grande apoio em sua mãe, Luísa, consciente dos poderes e da missão das filhas; e, na emergência causada pelo seqüestro do Papa, formam mesmo uma equipe de heroínas em ação. O relacionamento entre as gêmeas é o melhor possível, elas se comunicam por telepatia e se tratam por “minha univitelina”. Por outro lado, reconhecem que a sua paranormalidade as torna diferentes e que os seus poderes devem ser mantidos em segredo, sob pena de terríveis conseqüências. “Nós não temos namorados por causa disso”, queixa-se Aurora. “A quem podemos confiar nossos poderes?” Essa questão dos segredos é uma recorrência nas histórias de pessoas poderosas.
Entretanto, o dado mais importante nesta novela talvez seja a guinada que o autor dá no clima ou no tom dos assim chamados “Mitos de Cthulhu”, criados por H.P. Lovecraft. Enquanto nas obras originais deste escritor norte-americano, e nas de seus seguidores ortodoxos, predomina o mais tremendo fatalismo dos personagens que constatam a imensidão do terror cósmico — constatação que os leva, por vezes, às raias da loucura — em Carqueija surge uma real oposição ao poder dos Grandes Antigos, através de heroínas cristãs e poderosas. Esta ruptura do fatalismo lovecraftiano diante do império do mal representa uma nova experiência no gênero.
NOTA: como sou suspeito para resenhar a mim próprio, esta resenha não é crítica mas apenas descritiva e explicativa.
Rio de janeiro, 28 a 30 de agosto de 2009.