Tudo, aliás, é a ponta de um mistério, inclusive os fatos. Ou a ausência deles. Duvida? Quando nada acontece há um milagre que não estamos vendo.
Guimarães Rosa
Uma sala espaçosa, mantida a meia penumbra, quadros antigos nas paredes, um altar simples repleto de imagens, um cheiro de incenso no ar. Parada, em pé, Laura esperava o início da sessão. Estava nervosa. Arrependida até. Começava a questionar os motivos que a haviam levado até aquele lugar.
Disfarçadamente olhou para a porta. Em poucos passos estaria na rua e longe de tudo aquilo. Depois, era só ir para casa, tomar um banho e tentar esquecer. Poucos passos apenas. Contudo, algo a impedia. Algo a mantinha ali, presa e vulnerável.
Sinos. Cânticos. A porta foi fechada. A cerimônia estava prestes a começar.
Suspirou. Agora era tarde. O melhor a fazer era se acalmar e agir com naturalidade. Afinal, ninguém a obrigara a nada. Ela tinha pedido o endereço. Ela havia marcado a consulta. Ela, apenas ela.
As pessoas a sua volta começaram a cantar. Todos estavam à vontade, balançando-se no ritmo das melodias. Era como se uma corda invisível manipulasse os seus corpos, tornando-os verdadeiras marionetes. Laura percebeu que o seu próprio corpo estava reagindo à música. Forçou-se a permanecer quieta. Não queria dar vexame.
O incenso passava pela sala. Quem o trazia era uma das auxiliares. Todos estendiam as mãos e se viravam para receber a fumaça em seus rostos e corpos. Laura, imóvel, não sabia o que fazer. A auxiliar, gentilmente, a girou espalhando a fumaça sobre ela. Seus olhos arderam. Teve dificuldades em respirar. Mas de novo se controlou.
Os cânticos continuaram cada vez mais animados, cada vez mais fortes. Começou a sentir um pouco de tontura. “É a tensão, o cansaço desses últimos dias”, ela concluiu, tentando racionalizar seus sentimentos e emoções.
De repente, um susto. Alguém soltou um grito estridente. Era uma mulher que se curvando sobre o próprio corpo girava como um peão. O canto da assistência tornou-se mais e mais forte.
De repente, a mulher se acalmou e, endireitando o corpo, passou a circular pela sala como se estivesse em uma festa. Suas auxiliares correram para atendê-la, levando bebida, cigarros e um chapéu preto com uma enorme flor vermelha espetada nele. Ela recebia todos esses agrados com naturalidade, demonstrando estar acostumada com eles.
Olhando a sua volta, Laura percebeu que todos esperavam para ser cumprimentados. A mulher, enquanto fumava e bebia, passava em um por um, abraçando e, em alguns momentos, parando para conversar. Em breve estaria diante dela. Sentindo-se ainda mais nervosa, ela se preparou para o encontro.
A mulher estava agora bem na sua frente, fitando-a dentro dos olhos. Laura sentiu um calafrio percorrer o seu corpo. “Acho que vou desmaiar”, pensou. Como a mulher insistia em olhá-la sem falar nada, ela tomou a iniciativa:
- Boa noite – foi a única coisa que conseguiu dizer.
A mulher, abrindo um sorriso, olhou a sua volta:
- Olha como é educada essa menina! Carne fresca é assim. Depois que acostumar com o povo quero ver se continua tão educadinha.
Todos riram, satisfeitos. Depois disso, ela continuou a sua ronda. Conversando com um e depois com outro e nos intervalos fumando e bebendo. Após um certo tempo, a mulher dispensou a todos com um gesto. Em silêncio as pessoas foram saindo.
Laura não pode deixar de pensar: “Puxa vida! Só isso? Vim de tão longe para ouvir essa cantoria toda e trocar só duas palavras com a tal mulher?”. No entanto, apesar da frustração, também sentiu um tremendo alívio. Afinal, não havia sido assim tão ruim quanto ela tinha imaginado. Foi quando alguém lhe deu um puxão. Era uma das auxiliares.
- Você não, moça. Você fica. Ela quer lhe falar.
“Ai, meu Deus”, gemeu por dentro. Parece que ela tinha se enganado.
A mulher, agora sentada em uma almofada posta no chão perto do altar, a fitava muito séria. Fazendo um gesto com a mão, indicou outra almofada colocada na sua frente. Quando estavam acomodadas, as auxiliares se retiraram.
- Então, minha filha, qual a tua aflição? – perguntou a mulher, sem rodeios.
Laura não sabia ao certo por onde começar. Pensou em todos os motivos que a levaram até aquele lugar. Diante dela estava o desconhecido. Respirando fundo resolveu dizer toda a verdade, deixando de lado seus preconceitos bobos, quem era ela para julgar ou criticar. Olhando para aquele rosto velado pelo grande chapéu negro, respondeu:
- Vim em busca de ajuda. Não tenho dormido bem. Tenho pesadelos horríveis. Sinto-me angustiada e com medo. Tenho receio de estar ficando louca.
A mulher olhou bem no fundo dos seus olhos e inesperadamente soltou uma gargalhada, como se tivesse ouvido uma grande piada.
- Filha, loucos todos nós somos. Mas a moça veio ao lugar certo. Aqui a loucura tem uma explicação. Não há o que temer. – E sem esperar um convite ela colocou a mão sobre a cabeça de Laura e gritou bem alto.
O mundo começou a girar a sua volta. Uma estranha moleza tomou conta de seu corpo e de sua mente. Sentiu que voava. A última coisa da qual ela se lembra foi a de se ver rodopiando no meio da sala, juntando a sua risada a daquela estranha mulher. Depois foi só escuridão e o abençoado