Millôr de memória, Millôr de coração
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 29/03/2012, às 12H52
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
Havia um menino que não comia de modo algum. A mãe já não dormia de preocupação. Guloseimas aqui e ali, mas comida mesmo, nada. E quanto menos a criança comia, mais a mãe se descabelava. Mãe dedicada. Eis aí o sinal dos tempos: mãe com psicologia! Mas, isso não importa, o que vale é que o nome real da atitude é “amor de mãe”. Eis aí um sentimento que ninguém duvida que exista e que todos veneram. A tal mãe se punha na cozinha logo cedo, criando todo tipo de prato bonito e cheiroso para o garoto. O menino olhava, olhava, às vezes furava o quitute com o garfo, espionava um pouco e logo fazia cara de enjoado e até de enojado. “Não gosto!” “Não quero”. A mãe chorava. O choro da mãe ficou mais grave quando o garoto parou inclusive com as guloseimas, já não comendo nada mesmo. A mãe entrou em desespero e então resolveu ter uma conversa com o filho, em um tom grave, mas sereno. Vestiu a roupa de “mãe-eu-sou-mãe” e falou com o menino. Usou todo tipo de argumento. Apontou inclusive para o perigo da fraqueza e da morte. Morrer o garoto não ia. O bandidinho continuava saudável, mesmo não comendo. Não subia de peso, não descia. Coisa ruim não morre, dizem por aí. Mas a mãe não achava que o filho era mau menino, apenas um garoto com … problema de apetite. “Ruim de garfo”, dizia-se. Percorreu médicos, benzedeiras e confeiteiras. Nada. Restaurantes e lanchonetes – nada. Ajoelhou na frente do garoto e pediu, já chorando: “meu filho, diz o que você comeria, pode ser qualquer coisa, eu vou buscar para você”. O menino não se fez de rogado, e disse mesmo, com um ar quase que compadecido: “Mãe, o que eu gostaria mesmo de comer é uma lagartixa”. Qualquer outra mãe se espantaria. Mas não foi o caso dessa mãe. O desespero era tamanho que ela mais que depressa saiu para pegar uma lagartixa. Uma mulher não enfrenta uma lagartixa. Mas essa mulher era mãe, e como mãe, agarrou com a mão uma lagartixa que vivia lhe aterrorizando por ali. E lá foi o bichinho para a panela, com pouco tempero. Quando a lagartixa foi servida. Os olhos do menino brilharam. A mãe sentiu que o apetite havia aparecido. Colocou a mão no peito – Deus havia atendido suas preces e deixado, desde há muito, as lagartixas terem vindo com Noé. O menino pegou com uma mão um garfo e com a outra uma colher. Ficou com a colher e deu o garfo para a mãe: “ah mãe, eu vou comer sem companhia?” Era um convite fatal. O estômago da mãe tentou escapar por um buraquinho do dedão do pé, um calo arrebentado. Mas a mãe sentou junto do filho para enfrentar, agora na língua, a lagartixa. O filho não disse mais nada. Com ares de príncipe e força de rei, olhou para a mãe, esperando que ela começasse a degustação. “Seja o que Deus quiser”, pensou a mãe. Cortou um pedaço da lagartixa e num movimento rápido jogou para dentro a carne horrorosa, esponjosa, pegajosa – nojenta. O menino sorriu e mostrou apetite, mas logo em seguida empurrou o prato e fazendo cara de choro disse que não ia comer. A mãe, com olhos lacrimejando e uma náusea do capeta, perguntou: “mas por que não vai comer filhinho?” E o menino foi taxativo: “ah, a senhora comeu exatamente o pedaço que eu mais gosto!” É assim que me lembro do conto que li de Millôr Fernandes, e da minha lembrança, escrevi este aí. Fábulas Fabulosas, era esse o livro que abrigou essa história. Eu tinha menos de doze anos quando li isso. Eu havia encontrado a perfeição desse gênero de literatura que eu não tinha idéia do que era, e que até hoje talvez eu não encontre lugar para colocar. Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo, escritor e professor da UFRRJ