Miguel Carqueija na Bienal do Livro
 
 
por Flávio Bittencourt ([email protected]
 
 
"'Man as civilized being, as intellectual nomad, is again wholly microcosmic, wholly homeless, as free intellectually as hunter and herdsman were free sensually.' Oswald Spengler, apud tese doutoral onde se encontra o trecho abaixo transcrito (CRICKENBERGER, 2007).
 
[Com a palavra francesa flâneur não traduzida, como se encontra em W. Benjamin.] "The flâneur may be a ghost in more ways than one: for Benjamin he may be a cold, dead thing from an epoch of old. However, the death of Benjamin's flâneur in the sterile capitalist wastelands of department stores does not necessarily mean the death of the flâneur for everyone else. Because Benjamin's flâneur is weighted with such political and socioeconomic importance, being as he is an icon of bourgeois 'conspicuous leisure', the critic does not apply the concept to later literary figures who may have merited the same title, nor does he examine in much detail its manifestation in American literature outside of Edgar A. Poe".
CRICKENBERGER, Heather Marcelle. "The Structure of Awakening": Walter Benjamin and Progressive Scholarship in New Media, Universidade da Carolina do Sul (EUA), junho/2007 [tese de doutorado].
 
 
Brasília (22.9.2009) - Muito estimo meus amigos literatos. Sejam eles baudelairianos ou não, sejam eles benjaminianos ou não - e Miguel Carqueija rejeita liminarmente os autores que bebem na fonte do "velho barbudo" (K. Marx). Mesmo que Miguel Carqueija não fosse escritor, aliás, seria eu um de seus mais incondicionais admiradores, seja por sua competência profissional - fui colega dele no Banco do Brasil, onde trabalhei durante quase 18 anos, de 1977 a 1995 [desliguei-me da Casa no PDV, plano de incentivos a exonerações a pedido, e hoje sou servidor do IPHAN - DF] -, seja por seu firme caráter e humanismo incomparável.
 
Todavia, às vezes aprecio o fato preciso de que ele também seja escritor (e dos bons!) - escritor, diga-se de passagem, do gênero ficção científica -, já que mensagens como aquela que recebi dele, via e-mail, sobre a Bienal do Livro (Rio, setembro de 2009), dificilmente seriam emanadas de pessoas que não são escritoras, consideradas seja no plano estilístico, por mais rapidamente que ele tenha redigido a notícia (como eu, ele ainda não está gozando suas próximas férias), seja no plano do assunto tratado. E o assunto é um belo passeio que ele fez pela Bienal do Livro do Rio de Janeiro, eis que minha amizade por Miguel é pessoal e é também literária. A propósito, possivelmente a principal alegria nas férias minhas que se aproximam consistirá na leitura de um dos últimos livros de Miguel Carqueija, que ele gentilmente me mandou, autografado. Titulo do livro: Farei meu destino, um presente e tanto que dele recebi, recentemente.
 
Abaixo, apresento um conto - que considero magnífico - de sua autoria, para os amáveis leitores que não o conhecem perceberem a qualidade literária e existencial de seus textos. Os que conhecem Miguel Carqueija e sua obra e eventualmente não leram esse conto considerem-se - como, de resto, aconteceu comigo - devidamente presenteados, ainda que antes do Natal.
 
A narração turístico-literária que recebi por e-mail, não é, portanto, a de um conto popular [como pede o título desta Coluna], mas é a descrição, de Miguel, da sua visita à Bienal do Livro do Rio, um  "baudelaire/benjaminiano" relato, pois, apesar do pendor antimarxista - mas não consumista, como se verá no conto a seguir transcrito - de seu autor.

Carqueija não é um consumista. Mas por pouco tempo o foi, comprando vários livros na Bienal. Bendito consumismo, nesse caso especial! Nesse sentido - e para mostrar que emergiu uma exceção -, transcrevo um conto absolutamente não-consumista dele, a seguir.  [A propósito, o dileto Luiz Ribeiro - escultor, arte-educador da rede pública do DF (no meu tempo de aluno denominado professor de artes plásticas) e mestre em Educação (UnB) - pertinentemente considerou esse texto hiperrealista - e humanisticamente antiburguês, acrescento eu, aproveitando a carona. Acrescento que Miguel, católico praticante, nunca deixou de transmitir mensagens de conteúdo moral em seus escritos. Como as antigas fábulas de Esopo serão frequentemente citadas neste espaço dialógico-crítico (centrado em contos populares), cabem aqui essas fábulas contemporâneas, que não se aproximam das tais lendas urbanas das quais também espero oportunamente tratar (pelo menos desse conceito instigante, já que não sou antropólogo...). Considere-se provisoriamente, entretanto, a idéia de "realidade virtual" como integrante do lendário urbano da atualidade, elemento perturbador do perigoso imaginário de nosso tempo.]
 
                 
 

"FELICIDADE

                                                                                                                                                                                                                                    Miguel Carqueija

 

 

                 Aquele era, pelo visto, um dia de muita agitação na firma de meu pai. Encontrei-o no escritório central, todo atarefado, falando em três videofones, assinando uma série de documentos e atendendo as consultas de alguns assistentes. Não obstante levantou-se pressuroso ao me ver e veio ao meu encontro, apertando-me calorosamente as duas mãos:

-         Lúcio! Que bom vê-lo de novo na loja! O Natal está perto e por isso essa azáfama toda!

-         Papai, não quero que interrompa os contatos...

-         Não há problema nenhum. Borel, assuma no meu lugar que eu preciso conversar com o meu filho.

-         Claro, seu Bandeira.

                 Papai falou rapidamente com seus interlocutores, despediu-se deles e, pegando-me pelo braço, foi me levando pela imensa loja de departamentos da qual era o presidente, aparentemente muito eufórico com o movimento. Eu sempre admirava a facilidade que ele tinha para encerrar suas negociações cada vez que me recebia.

-         Clarice já não vem aqui com tanta freqüência – queixou-se ele. – Prefere cada vez mais a rotina do lar...

-         Mamãe teme atrapalhar seu serviço, papai...

-         Tolices! Aqui eu tenho tudo sob controle, como ela poderia atrapalhar? Não é uma maravilha contar com duzentos serviçais e todos eles serem ótimos? Não me dão nenhum aborrecimento.

-         Folgo muito com isso, papai.

Ele me levou por uma escada rolante para me mostrar o Papai Noel com as crianças. Por toda a parte pessoas alegres escolhiam eletrodomésticos, roupas, brinquedos e outras utilidades e preenchiam, com os vendedores, seus contratos de compra. E eu sempre tinha a impressão de que o local não estava exatamente igual à vez anterior. Uma escada, uma pilastra, um carpete, um candelabro diferente... ou as próprias paredes...

Por meia hora ele me mostrou a loja, os estoques de holotelevisores, os mais modernos modelos de bicicletas com  A. . I ., todas as novidades. Afinal eu me despedi dele, pois tinha de atender aos meus compromissos.

-         Avise a Clarice que eu vou chegar tarde hoje – lembrou ele. – Tenho que fazer hora extra, o movimento hoje está muito bom.

-         Está bem, papai, mas não demore muito. Mamãe preparou uma macarronada muito especial, como o senhor gosta.

-         Ah, é bom saber isso. A velha e boa Clarice! Ah, quando é que você traz a Judy com os meus netos?

-         Qualquer hora, papai. Qualquer hora.

                Despedi-me dele, constrangido, e dirigi-me à porta de saída. Abri a porta e saí para o corredor. Encostei a porta do simulador virtual e encarei mamãe, que me encarava com lágrimas nos olhos.

-         Mamãe – observei, tentando usar um tom de voz normal, pois eu próprio sempre saía abalado de tais visitas – já lhe disse, não adianta chorar. Ele é feliz, isso é que é importante.

Claro. Pois do lado de cá o que havia era uma mesquinha aposentadoria, e a família bancando a maior parte das despesas – inclusive aquele aposento de realidade virtual, o mundo dos sonhos de papai...".