I


 
À CIDADE DA BAHIA

 
Triste Bahia! Ó quão dessemelhante
Estás e estou do nosso antigo estado!
Pobre te vejo a ti, tu a mi empenhado,
Rica te vi eu já, tu a mi abundante.

 
A ti trocou-te a máquina mercante,
Que em tua larga barra tem entrado,
A mim foi-me trocando, e tem trocado,
Tanto negócio e tanto negociante.

 
Deste em dar tanto açúcar excelente
Pelas drogas inúteis, que abelhuda
Simples aceitas do sagaz Brichote.

 
Oh se quisera Deus que de repente
Um dia amanheceras tão sisuda
Que fora de algodão o teu capote!

 

 
DEFINE A SUA CIDADE

 
MOTE:

De dous ff se compõe
esta cidade a meu ver:

um furtar, outro foder.


Recopilou-se o direito,
e quem o recopilou
com dous ff o explicou
por estar feito, e bem feito:
por bem Digesto, e Colheito
só com dous ff o expõe,
e assim quem os olhos põe
no trato, que aqui se encerra,
há de dizer que esta terra
De dous ff se compõe.

Se de dous ff composta
está a nossa Bahia,
errada a ortografia
a grande dano está posta:
eu quero fazer aposta,
e quero um tostão perder,
que isso a há de perverter,
se o furtar e o foder bem
não são os ff que tem
Esta cidade a meu ver.


Provo a conjetura já
prontamente com um brinco:
Bahia tem letras cinco,
que são B-A-H-I-A:
logo ninguém me dirá
que dous ff chega a ter,
pois nenhum contém sequer,
salvo se em boa verdade
são os ff da cidade
Um furtar outro foder.

 
(Gregório de Matos, Salvador, Bahia, século XVII.)

 

II


MINHA TERRA 
 
Todos cantam sua terra,
Também vou cantar a minha,
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la rainha;
- Hei de dar-lhe a realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha.

Correi pr'as bandas do sul:
Debaixo dum céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil;
- É uma terra de amores
Alcatifada de flores
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de Abril.
Tem tantas belezas, tantas,
A minha terra natal,
Que nem as sonha um poeta
E nem as canta um mortal!
- É uma terra encantada
- Mimosa jardim de fada -
Do mundo todo invejada,
Que o mundo não tem igual.

Não, não tem, que Deus fadou-a
Dentre todas - a primeira:
Deu-lhe esses campos bordados,
Deu-lhe os leques da palmeira,
E a borboleta que adeja
Sobre as flores que ela beija,
Quando o vento rumoreja
Na folhagem da mangueira.
É um país majestoso
Essa terra de Tupã,
Desde'o Amazonas ao Prata,
Do Rio Grande ao Pará!
- Tem serranias gigantes
E tem bosques verdejantes
Que repetem incessantes
Os cantos do sabiá.
Ao lado da cachoeira,
Que se despenha fremente,
Dos galhos da sapucaia.
Nas horas do sol ardente,
Sobre um solo d'açucenas,
Suspensas a rede de penas
Ali nas tardes amenas
Se embala o índio indolente.
Foi ali que noutro tempo
À sombra do cajazeiro
Soltava seus doces carmes
O Petrarca brasileiro;
E a bela que o escutava
Um sorriso deslizava
Para o bardo que pulsava
Seu alaúde fagueiro.

Quando Dirceu e Marília
Em terníssimos enleios
Se beijavam com ternura
Em celestes devaneios:
Da selva o vate inspirado,
O sabiá namorado,
Na laranjeira pousado
Soltava ternos gorjeios.
Foi ali, no Ipiranga,
Que com toda a majestade
Rompeu de lábios augustos
O brado da liberdade;

Aquela voz soberana
Voou na plaga indiana
Desde o palácio à choupana,
Desde a floresta à cidade!
Um povo ergueu-se cantando
- Mancebos e anciãos
–E, filhos da mesma terra,
Alegres deram-se as mãos;
Foi belo ver esse povo
Em suas glórias tão novo,
Bradando cheio de fogo:
- Portugal! Somos irmãos!
Quando nasci, esse brado
Já não soava na serra
Nem os ecos da montanha
Ao longe diziam - guerra!
Mas não sei o que sentia
Quando, a sós, eu repetia
Cheio de nobre ousadia
O nome da minha terra!

Se brasileiro nasci
Brasileiro hei de morrer,
Que um filho daquelas matas
Ama o céu que o viu nascer;
Chora, sim, porque tem prantos,
E são sentidos e santos
Se chora pelos encantos
Que nunca mais há de ver.
Chora, sim, como suspiro
Por esses campos que eu amo,
Pelas mangueiras copadas
E o canto do gaturamo;
Pelo rio caudaloso,
Pelo prado tão relvoso,
E pelo tié formoso
Da goiabeira no ramo!
Quis cantar a minha terra,
Mas não pode mais a lira;
Que outro filho das montanhas
O mesmo canto desfira,
Que o proscrito, o desterrado,
De ternos prantos banhado,
De saudades torturado,
Em vez de cantar - suspira!

Tem tantas belezas, tantas,
A minha terra natal,
Que nem as sonha um poeta
E nem as canta um mortal!

Depois... o caçador chega cantando,
À pomba faz o tiro...
A bala acerta e ela cai de bruços,
E a voz lhe morre nos gentis soluços,
No final suspiro.
E como o caçador, a morte em breve
Levar-me-á consigo;
E descuidado, no sorrir da vida,
Irei sozinho, a voz desfalecida,
Dormir no meu jazigo.
E - morta - a pomba nunca mais suspira
À beira do caminho;
E como a juriti, - longe dos lares -
Nunca mais chorarei nos meus cantares
Saudades do meu ninho!

(Casemiro de Abreu, Lisboa, Portugal, século XIX.)




III

 
TODOS CANTAM SUA TERRA, TAMBÉM VOU CANTAR A MINHA*

sou um homem desesperado andando à margem do rio Parnaíba
sou um homem com Glauber Rocha na cabeça e uma câmara na mão
andando fico à margem de minha terra:
TRISTERESINA.
terra nos olhos da lente.
só filmo planos gerais.
planos
o meduna.
ando pelas ruas mas tudo de repente é novo para mim:
a vermelha. a grama. o meu caso de amor. a estação da estrada de
ferro teresina-são luís um dia de manhã.
minha terra tem palmeiras de babaçu onde canta o buriti.e a melhor água do mundo.
e um poço.
e um menino.
como posso agora cantar minha terra;
estando tão longe-perto dela.
como posso eu e essa miséria louca

descobrir destruir as ruínas do lar
citação: NÃO TEREMOS DESTRUÍDO NADA SE NÃO DESTRUIRMOS AS RUÍNAS
 

(Torquato Neto, Rio de Janeiro, capital, século XX.)

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*Poema póstumo, publicado no segundo número da revista Arraia Pajeurbe, de Fortaleza-CE, em 2004, e não incluído na recém-editada reunião das obras completas do poeta em dois volumes, Torquatália, lançada pela Editora Rocco.

 

IV

reinscreve um poeta a seu passo a nova capital & a passada capitania de Piaguí1*     

 

tristeresina: um quê de semelhante

estás ao que era nosso antigo estado

(rico de nativos mortos por gados)
em este mote alheio & cambiante
 
se a ti tocou-te a máquina mercado
esse ouro que apaga muito brilhante
a nós todos aqui tem-nos-tratado
com os dous ff dum poema dantes
 
deste estado – a quem não deste por renques
as carnes como o-fez à gente ruda
de Bahia Pernambuco Minas (mortes!) –
 
há quem alegoricamente tente
fazer ainda uma vaca bojuda
para carnes & poemas de corte


(De Oeiras, Salvador, Ouro Preto, Recife a Teresina, em estados de Brasil.)


(Luiz Filho de Oliveira, Teresina, Piauí, século XXI.)


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* A Cineas, homem com letras, de cimos Sãos & Santos.

1. Piaguí: como era escrito o nome que, a partir de 1739, passou a ser grafado Piauí, conforme escreveu Ludwig Schwennhagen no seu excelente Os Fenícios no Brasil: Antiga História do Brasil - de 1.100 a.C a 1.500 d.C., publicado, pela primeira vez, em Teresina, em 1928.